domingo, 26 de junho de 2011

São Pedro... é na Baixa

Sim! Na Baixa!
Tenho toda a razão, a minha, para o dizer. Tal como teve quem escreveu, e eu li noutro lugar, assim: “o Espírito Santo é no Pico”!
Assim começo, e vamos por partes.
        São Pedro – primeiro Papa da Igreja – é um santo popular. Adquiriu popularidade para estas bandas. Tal como São João e menos Santo António. As popularidades não são iguais em toda a parte. São mais intensas ou menos intensas consoante as apetências dos devotos e devotas, e as histórias milagreiras avançadas pelos pregadores de tempos idos. Tempos em que era mais fácil adquirir fé. Ora vejam.
        São conhecidos os modos antigos de angariar fundos para sustento da paróquia. Entidades autónomas, próximas umas das outras, viviam à custa dos fregueses. Nem sempre as orientações eram bem aceites, mas em tempos isolados, de muita carestia, os contágios mais liberais não impediram a fé e a crença no santo que o pregador apontava. E a afluência numerosa acabou por impor-se. Tanto dos fregueses menos fervorosos, como dos outros vizinhos mais próximos.
Foram estratégias levadas a cabo no sentido de melhorar a vida paroquial. Em tempos difíceis, a fé também dava alguma coisa para manter a vida. “Quem trabalha no altar, vive do altar”. As festas, muitas delas, assim se foram implantando, e se estenderam às mais recônditas ermidas e ermidinhas ao longo da costa.
Assim se compreendem as “romarias” para São Pedro da Baixa, para São João do Calhau, e outras que aconteceram por toda a ilha. São Pedro, o da Baixa, foi sempre ponto de encontro dos povos da Ponta da Ilha, desde a Calheta pelo sul, depois Piedade e Santo Amaro já pelo norte. Sem esquecer São Jorge em frente.
       
        Não afasto a ideia de que hoje se vai à festa pela fé que se tem. Fiquem tranquilos os fiscais do santo ofício! Acredito que muitos lá vão por esse motivo e até levam as suas oferendas para arrematação. Mas não é a fé o grande motivo de ir à festa, ou de ir ao Calhau, nem de ir a mais longe. É mais o hábito, o costume, o ver amigos, o convívio, ouvir a banda ou bailar a chamarrita pela tarde e noite dentro.
        E também – é bom não esquecer – a visita ao amigo que está na adega, que tem preparada a melhor ementa da festa para oferecer a quem aparece. As novidades da horta da adega, o peixe ali ao lado pescado, os molhos de salsa crua, as saladas frescas colhidas e lavadas na altura, são do melhor que se apresenta.
        Hoje, as próprias pessoas reinventam a própria festa. Os crentes e não crentes, com mais ou menos espírito criativo, não esperam por indicações episcopais nem ouvidoriais, e lá aparecem com os seus açafates de mini rosquilhas, que distribuem a quem passa, lá para os fins da tarde. São inspirações do “divino”, aprendidas pelo Espírito Santo que é de todos, formas de participação na festa que herdaram e desejam manter viva.
        As festas do Espírito Santo são as maiores dos Açores. As que mais se vêem e se praticam. Fazem parte da nossa identidade. Nada mais natural do que levar um pouco do seu “espírito” para outra qualquer festa. O “arrelique” da mini rosquilha ou mini véspera é um sinal da presença do Espírito Santo. Uma mensagem que se leva para junto da família.
        São Pedro, o da Baixa, não afronta outras festas. Nem outras “novas” que vão acontecendo, como acabo de verificar. Até as saúda, e que venham para ficar. Mas, por enquanto…é na Baixa!
-altodoscedros.blogspot.com
-texto escrito na ortografia antiga

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Um Junho cheio...

Um Junho cheio. Cheiíssimo. De tudo um pouco. Até de eleições “dispensáveis”. Se enumerar, corro o risco de ser incompleto; e outros dirão: olha, falta isto e aquilo, e mais isto e mais aquele outro…
        Aí vai uma data delas, conforme a minha alambrança.
        Tudo começou com o movimento das crianças no seu dia – um de Junho. Para logo a seguir, no dia 4, as mesmas promoverem o seu festival infantil “Baleia de Marfim”. Terão sido as melhores de todas as festas, pois são as crianças a garantia do nosso porvir. É redundante dizer mais.
Depois, foram as eleições que nos obrigaram a novas escolhas. Sabe-se lá no que irão dar!... É a nossa sobrevivência colectiva sempre ameaçada, posta em causa. Foi sempre assim. É a nossa sina.
        Vieram a seguir as festas maiores dos açorianos – as festas do Espírito Santo. Foi o Sábado, o Domingo, a Segunda e a Terça-feira, a Trindade, mais as sopas que abundaram, mais os pães, rosquilhas e bolos nos Impérios de toda a Ilha; porque o Espírito Santo foi no Pico, como se disse nos jornais;
        Foram e vão continuar a ser as tradicionais festas dos santos populares – o António, o João e o Pedro. De uma ponta à outra da Ilha, passando por ruas e ruelas, mais esta ou aquela Ermida, na adega, debaixo da latada, ou no terreiro, à volta da fogueira, de tudo se falou, de tudo se bebeu, de tudo se petiscou e também se balbuciou a reza ao santo preferido, não vá ele vingar-se dos nossos esquecimentos.
        Nas hortas, e hortinhas mais à beira da costa, muitos tiraram novidades que alegraram quem as semeou, apesar da falta de chuva que impediu ser produto de maior qualidade e quantidade.
 Neste seguimento, convém reparar no que nos dizem alguns entendidos: para amansar os efeitos da crise e nos safarmos do afundamento, basta que todos os portugueses passem a consumir produtos nacionais. Cultivando o mais que se puder e comprando do que se produz dentro das fronteiras. Se assim acontecer, em pouco tempo ficamos por cima da linha da água.
Mas isto é assim mesmo, como nas eleições. A gente semeia, e havendo bom tempo e chuva, as novidades são de qualidade. A gente vota e havendo juízo e um pouco de calma, os resultados também são de qualidade. Quando falta a chuva e não há juízo tudo se vai. Às vezes, nem sequer chega a nascer. Aborta antes do tempo. Mas… dos maus agoiros, livrai-nos, Senhor!
        Resta saber se, no meio de tanta incerteza, estas riquezas que Junho nos deu voltarão a vir no ano que vem. Esperemos que sim. Fora com pessimismos.
Esperemos que voltem as crianças no dia um, que volte outra “Baleia de Marfim” e que voltem as nossas festas populares; para continuar a dar a todos a certeza da devoção à cultura que nos identifica, à pátria que construímos, o louvor e a acção de graças ao Espírito Santo que nos acolheu, bem como aos santos populares que nos alegram no meio das agruras da vida.
Das eleições, só daqui a 4 anos. E, por favor, não se lembrem de acabar com dias que tradicionalmente reservamos para as festas. Desde remotos tempos. Não são os feriados, nunca foram, as causas de menos ganha-pão. E nunca foram causa de menos receitas para o estado.
        Faltou alguma coisa? Faltou. Faltou completar o que dizia na semana passada sobre os exames dos alunos: nada de cabular, como fizeram os candidatos a novos juízes. Só nos faltava mais este exemplo!
Faltou mais ainda? Sim, dar os parabéns ao jornal “O Dever”, instituição respeitosa, por mais um aniversário. Aqui os deixo, formulando votos de muitos anos de vida.
Por aqui me fico. E até um dia, se Deus quiser.
Manuel Emílio Porto
(altodoscedros.blogspot.com)
(texto escrito na ortografia antiga)
       

sábado, 18 de junho de 2011

O insólito continua...

Acabo de ver na SIC uma notícia com o título “O Decote da Discórdia”. Depressa me apercebi do que se tratava. A uma jovem, adolescente, havia sido negada a comunhão, por ter o decote exagerado.
Em cena televisiva lá estavam: a jornalista, a jovem e a sua mãe. Todas apreciando, discutindo o atrevimento do senhor prior em ter feito uma “desfeita daquelas à minha filha!”
Não me detive mais tempo a analisar o que ouvia. Bastou-me somente constatar mais um sinal dos tempos retrógrados e de má memória.
A propósito, transcrevo na íntegra um texto colhido há anos num jornal de língua espanhola, e que parece vir nesta sequência de coisas insólitas.
“Na cátedra de Jesus sentam-se os talibãs. Não façam, nem o que dizem nem o que fazem. Esta paráfrase das palavras do próprio Jesus pode parecer impertinente. Não será mais do que a sentença que Ele pronunciou perante os que se sentavam na cadeira de Moisés. Ocorreu-me quando me iam chegando notícias das actuações dos novos curas vestidos de viúvos inconsoláveis que nos vão chegando dos seminários.
        A revista Golias sustenta que é preciso denunciar o pecado e o pecador. Ela faz sempre assim. Limitar-me-ei ao primeiro já que a lista dos aludidos está á disposição de quem tenha curiosidade.
        Um cura jovem de um povo de Madrid proibiu numa boda que a irmã do noivo lesse uma carta dirigida ao pai que havia falecido há um ano depois de ter estado em coma durante dois anos. “Tenho de fazer tudo segundo o ritual”.
        Outro pároco de uma diocese de Madrid não deixou que uma catequista com 15 anos de serviço fosse a um curso de catequese “porque não falava aos meninos no demónio”.
        Um terceiro expulsou do coro da paróquia uma senhora porque foi cantar na boda civil de uma amiga. O mesmo dedicou a homilia de Natal ao tema da retirada do Crucifixo das escolas. (Quem me informou dizia: estou contra retirar o crucifixo, mas não é assunto para o dia de Natal”!)
        Outro aproveitou a leitura sobre os Reis Magos para denunciar os que não se ajoelhavam na consagração, por orgulho, porque não querem submeter-se a Deus.
        Um bispo da nova jornada, também jovem, vai fazer a visita pastoral. Diz ao secretário que previna para não esquecer a água para os lavabos da missa.
        São curas recadentos. Um deles em Toledo interpela nas ruas os meninos que não vão à missa e os que vão. Como consequência, gente que ia á missa, deixou de ir.
        Há pouco tempo um cura de Madrid repreendeu três vezes os fregueses na missa: porque rezavam o gloria muito depressa, porque a uma senhora soou o telemóvel, e porque comungavam trezentos e só cinco se confessavam. Quem me contou saiu.
        E uma história final: numa paróquia perto de Madrid o pároco preside a uma boda tradicional. A noiva está velada. Depois dos consentimentos o cura disse ao noivo: “Já é tua mulher. Podes levantar-lhe o véu”. A meu lado estava uma feminista que comentou: “se Freud ouvisse esta de levantar-lhe o véu…
        Três características têm os novos curas:
        A sua sujeição absoluta à lei. Como no caso dos fariseus.
        Têm o mesmo discurso da dignidade e da autoridade. Uma freguesa afirma: “Onde há mestre não manda o marinheiro”.
        São ideologicamente conservadores e da extrema direita. Os homossexuais são doentes, as mulheres devem sujeitar-se aos maridos, o aborto é pior do que a fome, os pobres são os que não tem fé, e Zapatero é a incarnação do diabo.
        A seu favor: todos são muito piedosos. Como os fariseus”. Carlos F. Barberá

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Venho cumprir um "Gasto de Coroa"...disse o João da Carolina, acabado de chegar

A tia Rosinha da Canada da Rocha, de oitenta e tal anos, andava atarefada na colheita das sementes de nabo para o ano seguinte. Era a meio da tarde, e o sol de Setembro batia quente nas paredes brancas do balcão. O tempo ia de feição para secar aquelas sementes. Quando foi dentro, à cozinha, para ver se os inhames precisavam de mais água, bateram à porta. Veio, apressada, e perguntou:
        - Quem é?
        - O João da Carolina.
- Não acredito. O João da Carolina?!
- Sim, sim, o João.
- Deixa-me cá ver. Olha, olha, quem havia de aparecer! Há tantos anos desaparecido para essas Américas, sem dar sinal! Entra, e senta-te ali naquela caixa, e dá cá um abraço e um beijo, que eu andei contigo ao colo.
E continuando, insistiu: Diz-me lá, conta-me a tua vida que eu gosto de saber; às vezes dizem-me umas coisas, mas nunca fico sabendo, até porque já oiço mal.
O João, melhorando-se no lugar onde se sentara, começou:
- Olhe, os primeiros anos foram muito maus. Para a América fui no dia 8 de Janeiro de 1950, num grande navio. A tia Rosinha lembra-se daqueles grandes navios italianos que passavam aqui no canal? Pois, foi num desses. Na altura tinha vinte anos. Embarquei em Ponta Delgada. Foram vários dias de viagem, já não recordo quantos, ao certo.
Fui com carta de chamada. Quando cheguei, mandaram-me lavar roupa e pôr a secar. Fazer limpezas domésticas. Ganhei os primeiros dólares e, passados dois meses, num belo dia, meti-me no comboio e dei comigo na Califórnia.
 Aí conheci um homem da Graciosa que me indicou um lugar para trabalhar. Num grande rancho de gado. Foi o melhor que me podia acontecer, pois como sabe, aqui nesta ilha, foi sempre o que soube fazer: tratar de gado.
 Casei, melhorei a vida e vivi muitos anos bem, desafogadamente. Mas depois… a mulher com quem tinha casado, deixou-me, quis ir viver com outro, e fiquei sozinho mais um filho que ela me deu.
 Hoje estou reformado, vivo sozinho numa casa que tenho nos arredores de Sacramento. À volta, tenho árvores de fruta, umas aves em cativeiro, e por ali vou vivendo. Já vou com 70 anos. Não tenho mais nada. O meu filho casou e foi para as ilhas Guam, onde por lá anda a pescar e faz a sua vida. Agora só me restam os dias finais, que só Deus sabe quantos. Mas queria, antes de regressar, cumprir uma promessa ao Senhor Espírito Santo – um gasto de coroa.
- Vais cumpri-lo, aqui, na nossa igreja?
- Pensava ser aqui. Aqui é que nasci e foi naquela igreja que me baptizei. O Padre Jacinto (o Velho), é que me baptizou.
- Está certo. Não acredito que leves a coroa na casa onde nasceste, pois ela já caiu. As águas infiltraram-se e aquilo foi apodrecendo tudo. Vai ser na casa do teu primo?
- Não, não. Vou usar a casa grande, o salão. Talvez a direcção autorize. Vou falar primeiro com o presidente. A tia Rosinha vai ajudar-me a lembrar quem é que vou convidar, e quais as coisas todas que são precisas.
- Tudo o que puder, faço de mil amores. E o Padre? Olha, que ele vive aqui ao lado, na freguesia vizinha, mas vem ao Domingo. Vais ter que combinar com ele o dia e a hora. Combina com ele. Vais ter sorte, que ele é um moço bem ensinado.
E, continuando, mais disse:
- Hoje em dia não é como antigamente. Os padres são poucos, dizem, e não parecem lá muito pacientes…, Mas este é bom.
- Está bem, tia Rosinha. Daqui a dias volto para falar de novo consigo. Adeus.
Setembro já ia alto e o Outono andava por perto. Naturalmente que o João vai passar aqui o Inverno. Foi uma pergunta que ficou por fazer. Há-de ser da próxima vez quando ele voltar, pensou consigo a tia Rosinha.
Não passaram três dias e o João estava de volta.
                               ***
- Então, o que resolveste?
- Olhe tia Rosalina, vai ser no segundo Domingo de Páscoa do ano que vem.
- Quer dizer que vais passar aqui o inverno todo!
- Sim, sim. Já foi com essa intenção. Tenho tempo bastante para recordar essa gente, e preparar os dias de festa. Não será uma coroação de muitas centenas de convidados, mas quero, pelo menos, convidar todos os rapazes do meu tempo e outros que conheci. A freguesia também não cresceu muito e por isso não vai ultrapassar as quinhentas pessoas.
- E a carne, o pão e as sopas?
- Já falei com o José da Emília que me vende dois bois. A senhora Josefa, que costuma fazer sopas muito boas, e que ainda é minha parente, também me disse que se encarregava delas, e o vinho há-de ser aqui da freguesia. Já me falaram em várias adegas que vendem vinho. Não vai faltar nada.
- E a Filarmónica, convidas?
- Vou falar à que fica mais próxima, a do Juncal.
- O Padre falou-te nos cantores da Capela?
- Falou. Ele diz que se encarrega de dizer a eles. Que eles costumam também ir ao jantar das sopas, sem mais qualquer remuneração.
- E os foliões? Não te esqueças deles… O José da Perpétua já morreu, mas há outros que o substituem muito bem. Sempre a gente entende melhor o que eles cantam. Com o José da Perpétua ninguém percebia nada. Era só ióoo, divi.. nóooo.. spiró..santóá… uma lengalenga que só dava para rir!
- Também já falei com os foliões. Com o Joaquim e o irmão e com um outro que é ferreiro. Dizem que sim senhor, com muito gosto.
- Então, tens a tua festa planeada. Agora é só ir comprando o que é preciso. Farinha, ovos, manteiga e outros sabores próprios daqueles dias. Não vai faltar quem te lembre e quem te ajude. Nestas coisas do Senhor Espírito Santo, todos se chegam para dentro. Ainda é assim. E há muitos que, quando são convidados, costumam levar ao mordomo alguma coisa para a festa. São costumes antigos.
- Adeus, até daqui a uns dias. Vou ir ao Faial ver uns amigos. Irei depois às Velas e ao Topo. Quero ver se estou de volta pelos Santos.
Assim aconteceu. A Senhora da Conceição, O Natal, o Ano Novo, a Matança do Porco, e o Carnaval foram os acontecimentos revividos de tempos passados. Até que chegou a Páscoa e a Pascoela.
                               ***
Já todos os preparativos estavam no sítio certo. Um início de semana de trabalho, de rezas e de cantigas tradicionais. As cozinheiras não tiveram mãos a medir. Pães dentro do forno, pães fora do forno, estendidos na arquibancada, cobertos com grandes mantas. Foi um tal aviar. Mais os biscoitos e “brindeiras”. Alguidares ora cheios, ora vazios.
As carnes – no campo da horta do José Joaquim, que ficava ali perto – foram sendo preparadas para enxugarem. Vieram depois, das adegas, os vinhos. Os queijos da fábrica. E as lapas para os desejos do fim do dia, após as canseiras e as rezas do terço ao Senhor Espírito Santo, de quantos se ocuparam nos afazeres.
Finalmente, o dia da Coroação. Missa às 11 horas. Com pouco atraso do senhor Padre.
- Olha, lá vem o senhor Padre, diz a tua Rosinha.
                               ***
A procissão para a Igreja começava também. Os foliões já davam sinais, cantando loas ao Mordomo e ao Senhor Espírito Santo. E já os cantores na Capela começavam “Vem Espírito Santo…”
A Missa foi cantada pelo Grupo Coral da Paróquia. E não dispensou no momento da coroação o “Veni Creator” de João Jordani, a quatro vozes, o tal que fazia estremecer os cantores, de lenço na mão a limpar o suor que escorria pelo pescoço abaixo.
 Após a missa e em procissão, ao som do tambor, em frente à porta da entrada da Casa do Povo, novamente a Capela mais os Foliões entoam o Magnificat, o cântico de acção de graças. De seguida, os símbolos do Espírito Santo são colocados em altar dignamente florido e enfeitado e todos os convidados ocupam os seus lugares no grande salão.
O João da Carolina quis que a tia Rosinha ficasse junto dele, na mesa, durante o jantar. Assim aconteceu. Foi ocasião para mais uns dedos de conversa.
- Quando ouvi cantar o Veni Creator, começou a tia Rosinha, lembrei-me do António Machado, do João Soares, e de outros cantores, como os Biscaias, os Fragas, os Lourenços, o Francisco Janeiro, o Soares e o Manuel Guiné. Cada um fazia o seu solo. Garganteavam que agente gostava de ouvir. Era mesmo bonito. Hoje são umas cantigas meias solteiras, meias corriqueiras, cada um para a sua banda…
- Ó tia Rosalina, pelas Américas é a mesma coisa. São cantigas do ié, ié, de comer, de beber, de rodopiar, balancear e estar sempre em pé!
- Tiveste muita gente na coroa. Mas isto, aos domingos, vai pouca gente á Igreja. Mas os padres também não se importam lá muito com isso. Há dias, um veio aqui para confessar, mas não apareceu ninguém. Quando saiu disse que “isto era uma terra de santos”. Já poucos se chegam.
- Eu já não digo nada. Estou há muitos anos fora. Quem se lembra do que isto era e do que agora temos, faz pensar. Mas, são os tempos de hoje. E, olhe tia Rosinha, não são os padres que vão salvar a vida da gente…Tive um velhote amigo que costumava dizer: padres, é largá-los com corda e tudo…
- Vai mais uma pinga, tia Rosinha? Olhe que ela é boa. É da adega do Manuel José. Todos dizem que é um bom vinho. Eu gosto dele.
- Não, agora não deites mais. Está bom assim.
Veio a carne assada. Veio o arroz doce. Mais uma pitada de conversa, e por ali se ficaram os comensais que passavam a agradecer o convite e a desejar felicidades.
Entretanto voltam os foliões, desta vez para agradecer:
        “Estas mesas foram postas
        Hoje com grande amor;
        Foram postas em louvor
        Do Altíssimo Senhor.
                               Por aqui vamos andando
                               Ao toque deste tambor;
                               Aqui estão os vossos servos
                               Ó meu Altíssimo Senhor.”
Pela tarde adiante, algumas sopas, pão e doces foram levados aos doentes da freguesia.
Finalmente, todos se retiram, aos poucos. E os foliões, já mais alegres e bem dispostos, vão cantando em tom jocoso:
“Recolhei-vos, pomba branca!
Recolhei-vos!
Que anda caçador em terra!”
Nos dias seguintes, foram as limpezas. Totais. O João era um homem satisfeito. Tinha cumprido a sua promessa. Lembrou os tempos da viagem. Os tempos das lavagens de roupa e das limpezas na América. Os tempos felizes do casamento. Os tempos difíceis que vieram. A tranquilidade da saúde. E o bem-estar que o Senhor Espírito Santo lhe trouxera.
- Então, estás satisfeito? Perguntou a tia Rosinha.
- Sim. Quem paga o que deve…
- Tem um lugar no céu!
- Ó tia Rosinha, isso já está ultrapassado. O céu é neste mundo. No outro, sabe-se lá. O mais importante é dignificar a vida, e em qualquer lugar do mundo. Ainda não há muito tempo que li estas palavras num jornal da Igreja Católica, lá na Califórnia.
O João da Carolina era um homem satisfeito.
                               ***
Foi mais uma coroação. Um gesto levado a efeito por quem ainda tem fé no Senhor Espírito Santo. O único Deus das gentes e dos “gentios” destas ilhas. Quem tem dúvidas?
Nas coroações há pessoas de todos os lados. Pessoas das missas dominicais sem falta, pessoas das missas de defuntos, pessoas das festas principais, pessoas de nenhuma missa. Pessoas de outras religiões ou seitas. Casados e divorciados.
O Espírito é Santo, Santíssimo, abrangente, ecuménico, universal, respeita a todos por igual e nada exige em troca a não ser fazer o bem sem olhar a quem. Toca a todos, sem distinção. É o Espírito do Povo de Deus. O Espírito mais universal que se conhece.
Soubessem disso os altos responsáveis eclesiásticos e talvez melhor servissem os povos a quem prometeram servir, sem reservas. Possivelmente teriam mais colaboradores, possivelmente menos se lamentariam.
As festas do Espírito Santo são o nosso maior valor religioso que temos. Implantado há muitos anos, é o lugar onde todos têm lugar e onde todos se sentem bem. Não cremos no aparecimento de outro, com capacidade de “renovar a face da terra”. Natália Correia acertou em cheio quando escreveu as primeiras palavras do hino da Região: “deram frutos a fé e a firmeza…”
 Boas Festas do Espírito Santo para todos.
Manuel Emílio Porto (altodoscedros.blogspot.com)







sexta-feira, 3 de junho de 2011

Diagnóstico de um teólogo

Pode-se dizer de muitas formas, mas não mais claro. O teólogo Joaquim Garcia Roca expressa-o da seguinte forma:
“Pertenço à geração dos que acreditaram, que viveram o Vaticano II como erupção de liberdade, vocação e coragem. O Concílio conformou a minha convicção da mente com a do coração.
Hoje constato que estas metas conciliares foram roubadas, por isso sofro uma profunda desafectação e dissonância cognitiva com respeito à Igreja de hoje: a que caminha para o gueto, a que ignora os testemunhos que construíram a história, a que prescinde da lucidez de alguns teólogos, a que reabilita posições sectárias, a que ignora a mulher, a que não pratica no seu interior a misericórdia nem a cultura dos direitos humanos.
Desgosta-me que a Igreja não seja contemporânea, que se feche em si mesma, que se distancie dos modos de sentir, pensar e viver da gente simples.
Este distanciamento produz efeitos devastadores. Sem ver como vivem as gentes, isto é; como são, o que querem, o que desejam, não há Igreja de Deus.
Partilho a opinião do grande teólogo dominicano francês, Yves Congar, no “Diário de um Teólogo” quando, proibido de ensinar e humilhado, reconheceu que “ lhe retiraram tudo aquilo em que acreditava”.
Esta situação não se resolve com a existência de um catecismo, nem com um papa teólogo, nem com as manifestações que lhe prestam nas praças que visita”.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Missa pela Televisão

Seguimos – por hábito, por defeito, talvez por curiosidade – as celebrações festivas que a Televisão nos mostra. Quer seja ao domingo, quer seja noutra festividade mais importante.
Cedo percebi e entendi as intenções do Concílio Vaticano II, nos anos 60 do século passado, que apontavam para o acto litúrgico como sendo uma acção colectiva, exigindo a participação integral de todos os intervenientes – presidente, acólitos, grupo dos cantores, assembleia.
A partir de então, os que conheci, e foram muitos, entenderam que uma celebração festiva, mais do que qualquer outra, exigiria a participação de todos. Embora se tivesse consciência das dificuldades em atingir esse desiderato, sobretudo quando se tratasse de multidões, a verdade é que tudo apontava nesse sentido.
Hoje, confesso que nos Açores os tempos melhores foram os primeiros. Muito trabalho foi feito, e bem feito, apesar de alguns desvios menores. Todavia, a partir dos primeiros anos deste novo milénio, tudo começou a ser relegado para costumes há muito recuados no tempo. Parece que perpassa pela Igreja um saudosismo doentio que faz pena.
Tomo por tema concreto, a celebração festiva da Missa de festa de Santo Cristo presidida pelo Cardeal Levada, Ministro do Santo Ofício. Segui atentamente todo o desenrolar das cerimónias no altar. Da minha observação deixo os comentários seguintes.
Quanto aos ritos e à sua lisura, foram certos, como num relógio. Isso terá contentado muita gente. Mas a verdade, porém, é que tudo pareceu demasiado formal, como se tudo fosse feito nos tempos do latim e versus deum. Apenas em dois pormenores houve a diferença: o vernáculo e o versus populi. No restante, foi uma celebração fria e intelectualizada, algo mecânica, só para os que estavam à volta do altar. A alma e o sentir dos participantes, sobretudo da assembleia, ficaram-se pelo silêncio em atitude expectante.
O Grupo Coral fez o seu desempenho, e bom desempenho. Preocupado com a execução perfeita dos momentos que lhe competia, de ligação ao altar, e totalmente desligado da Assembleia, espalhada pelo campo de São Francisco. A chuva até obrigou os instrumentistas a abandonarem os lugares que ocupavam.
Como se sabe – é das normas – todos os refrães, as respostas e o Pai-Nosso de uma celebração festiva, pertencem à Assembleia. E para este caso concreto, nada foi preparado. Faltou preparação. Faltou o condutor da Assembleia.
À escola dos cantores competem os temas de maior dificuldade; aos povos as restantes. À escola dos cantores compete usar a polifonia; aos povos o uníssono. E para completar o que digo, lembro somente o que Bento XVI recordou há dias, por ocasião dos 100 anos do Pontifício Instituto de Música Sacra: o sujeito da liturgia é a Igreja e não a pessoa ou grupo que celebra a liturgia.
E nada mais adianto, pois, sou apenas um observador. Compete aos responsáveis zelar pelo bom e exemplar desempenho da liturgia.
Termino, dizendo que uma celebração desta natureza, transmitida pela Televisão, deve ter também uma finalidade pedagógica – ensinar como se faz, escola viva, a melhor de todas as escolas.
Uma celebração sem alma é uma celebração de mortos, um espectáculo puramente material. Sem alma, a mensagem fica-se pelo rito, o que é francamente muito pouco. Quem quiser entender, que entenda. E, por muito que custe, nesta matéria, muito há que aprender de outras confissões cristãs. Basta olhar e ver como fazem.
Manuel Emílio Porto (altodoscedros.blogspot.com)