terça-feira, 29 de novembro de 2011

O Fado é do mundo

Sim, senhor! Passou de Portugal e dos portugueses para o mundo inteiro – toda a humanidade.
        Tal como ficamos contentes com a humanidade da nossa Montanha e de outras parcelas, também agora manifestamos o nosso contentamento. E desta vez, por uma razão especial – trata-se de um bem imaterial, que é uma cantiga, muito querida dos portugueses.
        O fado, como cantiga, está consagrado. Já estava consagrado. Pela voz de muitos homens e mulheres. Que ficaram para a história, e que, felizmente, hoje já tem lídimos representantes, seus seguidores. O futuro desta cantiga está assegurado.
        O fado, cantiga popular portuguesa, apresenta uma cor singular, muito de acordo com a história dos portugueses. Uma história feita de viagens longas, de ausências prolongadas, de encontros e confrontos dolorosos, de angústias e desilusões. Também de muitos amores e desamores, de afectos e desafectos. E de muitas tragédias. O fado lembra isso mesmo – a sina de um povo.
        É uma canção de intimidade. De saudade profunda. De alma cheia, de coração grande, como a saudade que “arrocha o coração”.
        O fado, como canção musical, é de uma estrutura simples. Geralmente feita de acordo com a medida da quadra popular. Quatro frases, uma ou outra repetida, e está feita a música.
        Faço estes apontamentos, pensando que a mesma estrutura também entrou na cantiga religiosa e sacra. Há exemplos já experimentados neste campo. Nem sempre bem conseguidos.
Claro que não estou a ver uma celebração religiosa feita com fados. Ninguém vai a uma igreja, à missa dominical, para ouvir fados. Estes têm lugar na sua casa própria.
        Outra coisa é ver a composição musical em forma de fado, na sua estrutura e na sua medida, destinada ao ambiente sacro. Temas, naturalmente, para ocasiões especiais, como entradas, ofertórios, meditação, acção de graças.
        Trago aqui, para exemplo feliz, o tema dedicado ao Bom Jesus, com letra de Albino Terra Garcia, e já muitas vezes executado nas festas de Agosto no seu Santuário desta Ilha.
D. Albino Cleto, Bispo de Coimbra que por lá passou, bastante satisfeito se sentia quando ouvia cantar aquele tema. Assim dizia: vai ao encontro da piedade popular. “Até parece que é cada um a dizer o que lhe vai na alma”. “Ó meu Senhor Bom Jesus // Sou peregrino do amor// Venho pedir uma graça // Para aliviar minha dor”.
        Estas palavras são a confirmação do que se diz do fado: uma canção que fala de dentro para fora. Uma canção com alma.
O mesmo se diz, pois, quando se entra no campo da fé, da fé de quem acredita, que canta o que sente no seu íntimo. É isso mesmo: é a alma que se manifesta através da poesia e da música popular.
Convém aqui recordar o que se diz da música em geral. A música não são apenas as notas, as pausas, os compassos, as modelações próximas ou arrojadas, a partitura. A música está acima disso tudo: a música é vida, é alma, é expressividade. A música há-de dar ao ouvinte a ideia de alguma coisa que vem de dentro para fora. E isso nota-se no rosto de quem toca um instrumento, ou de quem canta um tema qualquer. Basta reparar nos rostos dos executantes de uma orquestra, desde a batuta até aos grandes tambores.
Leio que em Lisboa já se fizeram liturgias com músicas de fado. Nunca ouvi. Não creio em colagens, pois, nesta área, são simplesmente desadequadas e impróprias. Creio, sim, em construções novas. Baseadas na forma popular. Da poesia e da música.
Agora, que o fado foi considerado património da humanidade, bem posso dizer, mais à vontade, que Montanha do Meu Destino, canção com letra de José Enes, é um autêntico fado dedicado à Montanha que nos viu nascer.
E mais não diria. Todavia, já que alguém levanta a hipótese de outros bens imateriais, como o Cante Alentejano, sou levado a exclamar: e a nossa Chamarrita do Pico?
É melhor dar o dito por não dito. Alguém, de imediato diria: antes o hino do senhôsantcrist!!!, ou, antes as vuelhas!!!
Ironias, à parte, deliciemo-nos com um bom fado. Cantado pela Amália.
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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

No fim das colheitas...

"O milho das Almas”
"O milho da Conceição"
        O milho cultivava-se no mais pequeno pedaço de terra. Nas hortas ribeirinhas e na meia encosta de enxada e alvião na mão; nos terrenos lavradios com bois de lavrar; e também mais no alto, em roças de relva e giesta, já em Maio adiantado.
        Os milhos, colhidos, eram secos no forno. Poucos usavam as “burras de milho” ao ar livre. Depois de cada fornada – por vezes diariamente – as esteiras, feitas de junco das lagoas do mato, eram estendidas no chão da loja ou no quarto maior da casa. Sobre elas se colocavam as maçarocas tiradas do forno, prontas para serem debulhadas.
 Sentados sobre a esteira, de pernas estendidas que apoiavam uma laje de pedra inclinada, a mão direita dava inicio à debulha, friccionando a maçaroca na pedra, caindo os grãos sobre a esteira. Nem todos tinham a máquina de debulha, um luxo só para os mais abastados. Dos que haviam regressado da rica América.
As secas dos milhos eram deveras trabalhosas e extenuantes. Na rua, bem perto da cozinha, era importante ter a lenha necessária. Gravetos para o acender do lume e achas para depois aquecer o forno. Importante ainda ter a lenha abrigada, por causa da chuva. Lenha alagada não arde, evidência pura que as mulheres da cozinha bem sabiam.
Feitas as temporadas das “secas dos milhos” – talvez umas três semanas de debulhas diárias, por vezes, mais – as caixas de pinho quase enchiam, consoante as produções relativas ao ano em curso. Havia anos bons e anos maus. Tudo se avaliava no fim das colheitas. Tudo se apaziguava e amansava nos dias seguintes, até às próximas sementeiras. O pão de milho era o mais importante numa casa. Para este ano vamos ter, para o ano que vem, sabe Deus!
Mas as pessoas também acreditavam que não estavam sós neste mundo. Eram agradecidos e sabiam que precisavam das bênçãos de Deus para as boas colheitas. Por isso, não se esqueciam dos parentes falecidos que lhe tinham deixado as propriedades, nem da protecção dos santos para a natureza que fazia germinar a semente.
Para os parentes falecidos, ou para as almas, como se dizia, colocavam pares de maçarocas sobre o adro da Igreja, no dia de Todos os Santos. Era o “milho das almas”.
 Uma imagem que ainda recordo – toda a parede do adro cheia de maçarocas, de uma ponta a outra. No mesmo dia, depois da missa, eram calculadas em alqueires, e depois arrematadas.
Para a protecção dos Santos, era a festa da Senhora da Conceição, a contemplada. Nas vésperas da festa, todas as casas eram visitadas, pedindo-se a cada família uma quantia, conforme as suas posses – um “razoila de meia quarta, uma quarta, por vezes um alqueire. Todo esse milho, em grão e já seco, era colocado sobre o sobrado, no canto da capela-mor. No dia da festa era arrematado. Era o “milho da Conceição”. Recordo anos de mais de um moio de milho.
O milho das almas e o milho da Conceição são dois momentos de uma tradição que praticamente desapareceu. Hoje, já quase nada de semelhante aparece. Os tempos já são outros. Já pouco milho para grão se semeia. Só alguns, por gosto e tradição.
Mas, tendo em atenção as crises que andam entre nós, não sabemos se algo voltará a acontecer. Os terrenos são os mesmos. Ainda existem. As pessoas e as mentalidades é que são outras. Será que o futuro aponta de novo para o campo?
A festa das Almas já passou e a da Senhora da Conceição está quase a chegar. Aqui deixo, neste apontamento, uma lembrança dos tempos que já foram. Para os velhos recordarem. E os novos, de alguma forma, também lerem, esperando que não tenham de passar por costumes desses outros tempos.
Era assim, na Ribeirinha deste Concelho.
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terça-feira, 22 de novembro de 2011

Os mercados do dinheiro...

Andou Bento XVI, mais uma vez, pela África. E um dos assuntos que abordou nas suas conversas e discursos foi a tentação dos mercados. “Afastai a submissão incondicional às forças dos mercados ou das finanças, bem como ao nacionalismo exacerbado”.
            Ora bem. Não é só o Papa que o tem dito. As crises que hoje nos batem á porta são mesmo fruto desses mercados. Não dos nossos mercados do pé da porta; daqueles onde vamos, quase todos os dias, fazer as compras para casa. Mas dos grandes mercados financeiros que compram e vendem dinheiro, e sempre em troca de dinheiro.
Quando o objecto do negócio é a compra e venda do dinheiro, está tudo perdido. Salve-se quem puder. É a forma de todos andarem dependentes uns dos outros. E sempre a avaliarem da credibilidade deste e daquele. Uma escravidão. É a nossa opinião, até que nos provem o contrário.
Nem que fosse de propósito, chegou-nos às mãos um texto do terceiro presidente dos EUA, Thomas Jefferson, que diz assim: “Acredito que as instituições bancárias são mais perigosas para as nossas liberdades do que o levantamento de exércitos. Se o povo o americano alguma vez permitir que os bancos privados controlem e emissão da sua moeda, primeiro pela inflação e depois pela deflação, os bancos e as empresas que crescerão à roda dos bancos despojarão o povo de toda a propriedade até os seus filhos acordarem sem abrigo no continente que os seus pais conquistaram”. (Whashington, DC – 1802).
Todos os países, ou governos, têm o seu Banco Central. Numa União de países são os Bancos centrais que vigiam e cuidam dos dinheiros de todos os povos que pertencem à União.
Em primeiro lugar está o poder dos governos, o chamado poder político, o único poder legitimado, e só depois o poder das finanças. Nunca o poder do dinheiro em primeiro lugar. Se não for assim, não será possível continuar a sonhar com a Europa, e quantas vezes – já aconteceu – com as próprias nações.
A Comunidade, ou estabelece regras iguais para todos – iguais para todos, repito – ou então destrói-se a si mesma.
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domingo, 20 de novembro de 2011

Que grande perspicácia!!!!

Sabem porquê? Ora leiam:

“Regulamento interno

Não pôde conhecer as pessoas que morreram antes de ter nascido. Não poderia conhecer as pessoas que viriam a nascer depois de ter morrido. E durante a sua existência estaria limitado por uma série de condicionalismos incontornáveis, como sejam o espaço, a matéria, a energia, o tempo.

O fim da certeza

Para estar aqui não podia estar ali. Quando estava aqui não podia estar ali. E, portanto, não podia estar aqui e ali agora. Não podia estar no mesmo instante em dois lugares distintos”.
 In Jornal “A União”, de 19.11.11 – Marco Gomes, Director

Agora, comentando...
Nem que fosse La Palisse. A velhota da Ponta da  Ilha diria, talvez ainda melhor: “esta foi tirada do cu com um pauzinho”, ou então "ficou com o cu a arder" .
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Quem manda, manda, dizia aqui neste lugar, há dias. E é assim. Quem manda acaba por ter este exemplo pela frente, compete-lhe a responsabilidade toda. Como diz o velho ditado popular: “ a culpa não é do ovo, é da pata que o pôs”.
Quousque tandem?
Manuel Emílio Porto
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quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A História repete-se?...

Costumamos dizer que a história se repete. E a verdade é que muitas vezes tem sido assim. Em 1910 veio a República. Com partidos, democracia e muitas promessas. Que nunca souberam acertar nos objectivos que programaram. Que tanto fizeram e desfizeram que deram azo ao 28 de Maio.
Veio um iluminado que disse: é este o caminho e ninguém mais bufa. Assim vivemos os tempos de Salazar e Caetano, que também cansou demasiado.
Veio o 25 de Abril, com promessas, partidos e democracia. Muita coisa foi feita, muita coisa parecia ir sempre para melhor. Mas, novamente parecem repetir-se os tempos fracassados dos outros anteriores.
        Ora bem. Não sou o primeiro a fazer esta análise, talvez demasiado simplista. Mas contém muito de verdade. Os nossos escritores souberam muito bem retratar os tempos da primeira República. Muitos têm tido o cuidado de os trazer de volta, e, para espanto de tudo e de todos, o diabo é que são mesmo muito parecidos.
        Acabo de chegar das terras do continente. Durante um dia tive a companhia de muitos homens que foram companheiros há 40 anos por terras de Angola. Para além do confronto das idades já longas, e das diferenças fisiológicas que se adquirem ao longo dos anos, veio a sensação das utopias e dos fracassos. E as conversas foram longas e animadas pela tarde fora, ora misturadas com feitos e façanhas dos tempos idos, ora regadas com as boas pingas do Douro e do Alentejo.
 Os povos greco-romanos foram sempre povos de características muito especiais. Muito dados às emoções fortes, às máfias, às corrupções, aos jeitos e às cunhas para tudo resolver na vida, apesar de terem sido berço da onda evangelizadora que veio de Belém. Entraram na União sem saber bem como, ou então a União não soube acautelar as linhas mestras da boa conduta solidária.
Os povos saxónicos, mais dados ao intelecto racional e calculista, foram sempre mais consistentes no seu desenvolvimento colectivo e solidário. Os choques, pois, mais cedo ou mais tarde, iam acontecer, como sempre, aliás, aconteceram.
Muitos dinheiros chegaram a Portugal e à Grécia para criar estruturas. Elas aí estão, e o desenvolvimento estagnou, ficou com era. Não se criou riqueza para justificar os investimentos.
Muitos barcos se abateram. Vieram outros mais modernos, mas parece que a produção não aumentou. Temos hoje boas estradas, mas não temos produtos a caminho da Europa e outros países. Se antes éramos uns pobrezinhos, hoje somos uns mendigos com caminhos abertos para outros nos virem trazer á porta as coisas de que necessitamos.
 Mas, há, garantem-me, quem veja capacidade de levantar a cabeça e de sermos capazes de continuar Portugal. A história repete-se, é verdade! O que virá a seguir? Vivemos tempos muito complicados, mas de esperança. É a nossa convicção, como a de muitos, felizmente.
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domingo, 13 de novembro de 2011

Quem manda, manda....

A 6 de Junho passado, tomava para título de opinião, a expressão comum de “Mete-se pelos olhos dentro”. Era uma opinião, baseada em factos concretos que aconselhariam outra solução. Pelos vistos, não nos enganámos.
        Quase diariamente, costumava passar pelo jornal “A União”. As opiniões que lá se tombavam eram apelativas, sobretudo quando assinadas por credenciais de nome feito e respeitado. Exemplos: Bispo Marcelino, Dentinho, Monjardino e outros.
        Confesso que a partir de algum tempo a esta parte, comecei a reparar com uma coluna que, só por si, desfaz o crédito do próprio jornal, ofusca a qualidade, e me diz ser melhor passar adiante. É como se de repente, nos aparecesse pela frente uma outra pessoa, toda de aparências tresloucadas, semelhantes aos doentes mentais da Casa de saúde de São Rafael.
        Os escritos, que não entendo, não compreendo, nem sei o que pretendem, do novo director, são isso mesmo: palavras e só palavras. Sem nexo nem tino. Assim não. Mas faço uma pergunta: é a união pastoral para a nova evangelização?
        Continuo a dizer: os jornais entregam-se a leigos formados. A pastoral, em suplemento, distribui-se nas igrejas, à porta da entrada. Assim vimos em muitas igrejas e catedrais da França, Espanha e Portugal, por onde andámos nos últimos tempos. “Mete-se pelos olhos dentro”. Quem manda, manda; os resultados aí estão. Onde param os “doutores da lei” e as consciências esclarecidas da velha Angra?
        Manuel Emílio Porto

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Angola 69/71 - Quarenta anos depois

(Encontro dos homens que foram militares da Companhia de Comando e Serviços do Batalhão de Caçadores 2889). Caldas da Rainha, Salão Milénio, 5 de Novembro de 2011 pelas 12 horas.


Caríssimos “crocodilos”

 Outubro de 1969
 Os tempos, à data do embarque, já eram muito conturbados, ameaçadores de futuros incertos, tempos propícios a fugas para outros países, na busca de uma vida estável que a Pátria não conseguia dar. Muitas deserções aconteceram, o país conheceu uma sangria acentuada, da qual ainda hoje se ressente. A juventude é a maior força de uma nação, um princípio válido para todo e qualquer sistema político. Assim se dizia então, hoje diz-se e amanhã também se dirá.
        Mas, se por um lado o ambiente português era de frustração, de “à rasca”, como hoje se diria, também já era de esperança. Os governos pareciam indecisos. E alguns movimentos inconformados, já se faziam sentir por todo o país. A esperança já minava os corredores dos poderes e das instituições públicas e privadas.
       
Tiveram estes homens de hoje, aqui presentes, na Pátria que os viu nascer, a oportunidade de sentir e viver os movimentos da história recente. Foram protagonistas dos maus momentos, que geralmente antecedem os horizontes de luz e de esperança. São ainda protagonistas dos desejos ainda não consumados. Parece que a nossa História é assim feita – de utopias e de frustrações.
Houve um antes da primeira República. Houve um antes do 28 de Maio e por fim, houve um “antes do 25 de Abril”, que foi feito e construído na base dos que não fugiram nem viraram a cara. Todos foram desse tempo. Fomos assim protagonistas de utopias e, pelo que hoje vemos, também somos de fracassos.
Obedientes ao poder de então, sem nunca esquecer a retaguarda, coube-nos percorrer Angola. Conformados, de forma íntima, na privacidade, partilhando com os colegas da mesma sorte, foram sabendo das notícias, foram sabendo e acompanhando o desenrolar das políticas do poder instalado.
 E foram confrontando, comparando, tentando encontrar uma explicação que só veio mais tarde, quando cada um, já se sentia aliviado do pesadelo dos anos vividos em terras africanas. Terras lindas, cativantes, mas que, muito dificilmente, poderiam continuar a ser nossas.
        Os anos que por lá passaram – hoje parece evidente – foram tempo de defesa da própria vida, e tempo de alimentar a confiança no futuro. O objectivo, na alma de cada um, era o regresso.
Regressar, constituir família, procurar uma profissão, e ajudar a construir a sua verdadeira Pátria. A sua preocupação dominante foi planear e sonhar o futuro que depois mais tarde encontrou.
 Era raro o soldado que diariamente não punha uma cruzinha no dia do mês e ano, no calendário, pendurado na camarata, “bem ilustrado e de rosas colorido”, para dizer assim em tom de exclamação: “menos um dia que falta”.
 Este pormenor foi revelador do que, depressa, me apercebi, quando lá cheguei, alguns dias mais tarde. O regresso era a obsessão do dia a dia.
Um companheiro das horas mortas, sempre levado a tiracolo – confesso que tive um deles – foi o gravador e leitor de cassetes com músicas de Zeca Afonso, Adriano e outros. Muita música de vanguarda se consumiu naquelas terras. Foi o bálsamo que suavizava, dava ânimo e coragem para o dia seguinte. Depois de cada audição, a alma ficava mais cheia, mais corajosa e carregada de esperança.

“Pergunto ao vento que passa
Por notícias do meu país”.

“Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não”.

                “Já lá vai Pedro Soldado
                Num barco da nossa armada”.


“O soldadinho não volta
Do outro lado do mar”.

Para descontrair, que também foi importante, lá ia uma cantiga popular:
       
        “Eu fui ao Pico piquei-me
        Piquei-me lá num silvado;
        Nunca mais eu vou ao Pico
        Sem o Pico ser mondado”.

Estas cantigas penetravam até aos ossos. Matavam a saudade e davam ânimo. E muitas do gravador passaram para alguns, que as cantávamos também.
Acompanhadas pela carolice do António Baptista Martins, no acordeão e do Manuel Pinheiro de Oliveira, no violão, e de mais uns quantos, cujos nomes agora não recordo. Era o conjunto “Os Crocodilos do Quango”. Que até teve direito a um hino, o hino do conjunto. Não recordo o autor da letra, mas revelava a fé que acompanhava a juventude de então:
Sozinhos e desesperados
Mas sempre fiéis soldados
Não viram costas ao perigo;
Fazem frente ao inimigo
Nas horas tristes da vida
É Deus quem lhes dá guarida.

Esteja sol ou chuva
Nunca faltam ao dever;
Há momentos de amargura
Por causa da vida dura,
Nas horas tristes que há
É Deus quem os salvará.

Na mata o esforço é forte
Quantas vezes frente à morte
Nunca há uma certeza
É uma vida de tristeza
Nas horas tristes então ´
É Deus que lhes dá a mão.

Coro:
São crocodilos,
São do Quango
São de Portugal também;
É o Batalhão
Que é sempre então
O MAIS ALTO E MAIS ALÉM.

               
        Assim se consolidou um objectivo comum – o regresso. O regresso que agora justifica este encontro comemorativo de profunda emoção humana. Não de saudade, mas de emoção sadia, que brota da mesma vivência e da mesma entreajuda. As dificuldades – quando sinceras e verdadeiramente sentidas – não esquecem.
        Caberia aqui recordar uma ou outra história. Mas ficam para as conversas durante a tarde. Todos terão algo a dizer ou a recordar um ao outro.
Da minha parte trago comigo duas recordações. Uma nada agradável, a outra ficou-se pela curiosidade. Começo pela primeira: Foi um regresso de Massau para Negage, via Destacamento do Cuango e Foz do Massanza, em avião Dornier que fazia o reabastecimento de víveres e correio. O piloto, Alferes Boavista, lembrou-se de atirar tiros para o rio e dar voltas sobre si mesmo. Amarrado a qualquer coisa no lugar das batatas e das cebolas, dando voltas em parafuso, já não via nada de nada. Tudo me parecia escuro. Quando aterrei no Destacamento do Quango, logo caí quase inconsciente. Soube depois, dizia o piloto aviador, que os tiros foram para turras que estavam no rio. Nunca ninguém soube dessa certeza.
Um outro episódio foi, quando, numa passagem pela C.Caç. 2605, também em Massau, o Capitão me ter convidado para um passeio ao lado de lá da fronteira. Aceitei e fomos em barco pneumático. Fomos direitos a uma pequena povoação. Tivemos pouco tempo, falavam francês, e olhavam-nos de riso amarelo; mas deu para ver uma mulher a fritar minhocas, muito parecidas com as minhocas das couves. Disserem-me que eram para comer. Arrepiei-me com aquela explicação, tive receio daqueles olhares estranhos e disse ao Capitão: vamos já para Massau. Voltamos em paz e não vimos crocodilos.
        E, voltando de novo, à solidariedade vivida durante dois anos, aqui encontramos a razão de ser destas comemorações. Que ninguém se escandalize por isso. Só os que passaram por África, na guerra é que sabem. Mais ninguém.

Novembro de 2011

Resta-me elogiar quem liderou este encontro. Quem pesquisou, quem procurou saber o paradeiro de quantos hoje aqui vieram. Dizem-me que no centro das diligências feitas estão o António Mendes e o Manuel Oliveira. Parabéns a eles. Do primeiro recordo, quando, conduzindo o Unimog, eu ia ao lado, à frente. Do segundo, quando pegava na viola, e dávamos largas às cantigas.
Finalmente, uma saudade para os que tombaram, e uma palavra solidária, para quantos, deste Batalhão e de todos os Batalhões, regressaram estropiados, e ainda hoje sofrem os efeitos da guerra.
        Não vale hoje, aqui, avaliar o que aconteceu a cada um dos vivos, durante estes 40 anos passados. Pena, naturalmente, para os que já faleceram. Coragem e força, para os doentes. Coragem e força para cuidar da saúde. Parabéns pelos sucessos que também os houve.
        Os tempos de Angola já estão lá muito longe. É importante recordar enquanto houver um sobrevivente. Não deixamos esta herança a ninguém. É nossa e vai connosco. Por isso, esperamos que ela se repita por muitos anos ainda.
 No livrinho “Angola 69/71”, que cada um trouxe consigo, o último texto foi escrito pelo capelão de então. Cito o derradeiro parágrafo: “O teu novo campo de batalha é bem mais difícil do que este que agora termina. Não cruzes os braços. Atira-te com valentia e vencerás. Portugal confia em ti e Deus nunca te desampara”.
Convém dizer que o Capelão de então era eu. Se hoje não posso sê-lo, por novo estatuto definido, sou-o pela natureza da mesma fé. Somos todos cidadãos de uma Pátria, que foi cristianizada pelos nossos antepassados. Independentemente das opções confessionais de cada um, a solidariedade é universal.
Por isso peço um minuto de silêncio e uma oração pela memória dos que por lá ficaram e pelos que já faleceram. (Pausa)
 Os votos que então expressei no livrinho citado foram votos sinceros. Felicidades para todos. Foi um prazer este reencontro. Até qualquer dia.
Manuel Emílio Porto
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