domingo, 24 de abril de 2011

Padre Dr. Edmundo Machado Oliveira

Em boa hora, na Ilha de São Miguel, e no século passado, um grupo de antigos alunos do Padre Dr. Edmundo Oliveira, resolveu pôr de pé uma Associação Musical, dando-lhe o nome do seu mestre e professor. Já lá vão 25 anos de existência, com bons desempenhos que agora se recordam e festivamente se celebram.
        Alertado para este acontecimento, entendi fazer uma referência especial ao homem que foi o Padre Dr. Edmundo Machado Oliveira, figura central daquela associação – a quem a Igreja Açoriana muito deve – e bem assim endereçar ao Orfeon que tem o seu nome, sinceros votos de bons desempenhos, exemplares exibições, em favor da cultura musical em coro.
        Com efeito, Edmundo Oliveira foi um pedagogo, de sabedoria estimulante e contagiante. Muitos, como eu, assim o atestam. Sobretudo, a forma de transmitir os sentimentos artísticos que envolviam toda a sua alma.
         Edmundo Oliveira sabia como fazer da música uma arte bela. De como a alma humana se revela, se abre aos outros, e entra docemente no mais íntimo do ser humano.
        Uma das funções da música “edmundiana” era a liturgia da Igreja Católica. Formado nas escolas de Roma, bem junto do Vaticano, ainda tocado pela fama de Lourenço Perosi, e contemporâneo de Domenico Bartolucci e outros mestres da Capela Sistina, absorveu e assimilou de perto o que de melhor se fazia e exigia da arte musical, na liturgia. Quantas vezes, nos dizia, quando tinha que repetir um tema: “ainda não está bom para ir ver a Deus”. E acrescentava: “nada de ruídos”. Gracejando apontava: “xô moscas”! Como se os nossos desafinos fossem zumbidos a manchar a beleza do canto.
        Os ensaios que fazia, preparatórios para as festas religiosas do Seminário e da Sé de Angra, eram sempre precedidos dos apelos à concentração, e à máxima atenção, não só ao texto musical e ao escrito, como à condução do director. Era a totalidade da alma numa espécie de concentração mística.
        Cultivava o bom desempenho da Capela, tendo em conta o seu contributo à liturgia, e como elemento educativo e pedagógico para as outras capelas açorianas, mais tarde dirigidas por alunos seus que conduzia. Ainda hoje recordo as suas palavras de estímulo, quando chegando atrasado, e, não querendo entrar no decorrer da execução, escutou fora da porta o canto do glória da Missa d’Uomo de Perosi. “Perfeiro, rapaz, gostei!”
        Uma outra vertente do Dr. Edmundo Oliveira foi a forma cativante como também enfrentava a música coral das mais variadas proveniências, fossem elas eruditas, clássicas, religiosas ou profanas.
        Edmundo Oliveira também deixou algumas obras musicais. Umas sacras, outras profanas. Das primeiras guardei algumas. Das outras nada sei. Há uma peça – uma Balada, do poeta picoense Bernardo Maciel – que ele musicou, já eu andava por outras terras, e que levou numa das festas de São Tomás de Aquino. No fim da execução, Monsenhor Pereira da Silva, levantando-se do seu lugar de honra, perante toda a plateia que enchia o velho salão do Seminário, foi felicitar o maestro Edmundo Oliveira, dando-lhe um grande abraço. Penso que a partitura dessa Balada – já caracterizada de belos efeitos inarmónicos – se encontra nos arquivos do Orfeão aniversariante.
        Hoje, já em adiantado tempo do novo milénio, ressalta-nos, de imediato, o quão distante estamos dos tempos de vida do grande mestre. Não sou saudosista desses tempos, mas lastimo a mediocridade que vemos por aí, sobretudo nas áreas que ele mais amava e cultivava com esmero – a música sacra, a música de ir ver a Deus, como ele dizia.
        Nesta data, é de registar a continuidade deste homem, pelas mãos dos seus antigos alunos e outros que a eles se juntaram. Lembro os primeiros – o Dr. José Rodrigues e o Padre José Gomes, já falecido e de feliz memória – que logo nos primeiros anos nos brindaram com temas provenientes do seu fundador.
O Orfeão Edmundo Oliveira passou por aqui numa das festas de Lurdes. Chegamos a retribuir essa visita. Mas os Açores não são nada benignos para as aproximações entre grupos numerosos. As deslocações são dispendiosas, e as crises também nos afectam. Por isso, apenas vamos sabendo da sua continuidade e desempenho por alguns amigos e pouco mais.
        Nesta data festiva, deixo aqui, uma palavra de felicitação a quantos dão vida e arte ao Orfeão Edmundo Oliveira. Bons desempenhos, e Ad multos annos.
Manuel Emílio Porto (altodoscedros.blogspot.com)

domingo, 17 de abril de 2011

Santo, Santo, Santo...

É o Senhor Deus do universo. Assim dizemos, louvando e bendizendo. Alguns diariamente o fazem. Outros, aos domingos, outros, uma vez por outra. Outros, nem se lembram disso.
        Nestes dias tudo nos fala da santidade. Não há órgão de comunicação social que não fale da santidade do papa João Paulo II. Toda a sua vida foi revelada, explicada, comentada nos jornais e revistas, rádios e estações televisivas. Todos estarão virados para a grande simpatia que o mundo teve por aquele homem que veio da Polónia.
 Foi o homem forte – quebra-gelos da guerra-fria. Depois, eleito papa, arredou da frente – para usar uma expressão muito nossa – retirou as barreiras e meteu-se por todo o mundo: “ide por todo o mundo, anunciai a Boa a Nova a toda a criatura”. Levou à letra as palavras do Mestre.
        O resultado foi uma onda de simpatia pelo papa, como nunca se tinha visto. Os banhos de multidão multiplicaram-se pelos quatro cantos da terra. Tudo parecia que a barca de Pedro estava cada vez mais firme e viva no mar encapelado das nações, algumas em conflito permanente, outras envolvidas em ameaças sectárias de nacionalismos, confissões exacerbadas e fundamentalistas.
        O resultado foi uma aclamação enorme de santidade súbita logo após a sua morte. No dia 1 de Maio próximo, será proclamado Beato.
        Ninguém sabe nem arrisca das consequências seguintes. O que irá acontecer, seja no dia a dia dos crentes, nas suas práticas diárias, nas suas devoções ao beato João Paulo, seja no confronto com a História que não se paga facilmente. Neste momento, ninguém arrisca a dizer mais. O que virá depois será a confirmação da evidência ou não dos factos ocorridos, e as dúvidas que entretanto irão prevalecer.
        E é da História que agora importa estar atento. Com João Paulo II e depois com Bento XVI, as grandes manifestações que envolveram aquelas duas figuras não terão sido as sementes de frutos duradoiros, como muitos esperavam. Foram antes momentos grandes, de sensibilidades efémeras, e pouco mais. Depois da euforia, veio a acalmia e tudo voltou ao que era.
 João Paulo II, quando chegava a uma terra distante, descia da escada do avião e beijava a terra que pisava pela primeira vez. Bento XVI descia, e logo se colocava o tapete colorido de escarlate, para colocar os pés e prosseguir.
Estas duas imagens perduram no tempo. Dirão alguns que são estilos. Talvez. Um veio do meio operário comunista, o poder está no povo; o outro do meio imperial alemão, o poder vem de cima. Cada um é outro Cristo na terra. (Alter Cristus). Os afectos são legítimos, não se discutem.
A santidade é atributo de quem faz bem sem saber a quem. É o povo que decreta a santidade, pois é ele – o povo – que faz os seus santos.
Nesta onda de “santidades” – nunca se proclamaram tantos santos como nos últimos anos – a primeira questão que se levanta, são os outros que ficam à espera da sua vez. Que já existem, e também são aclamados pelo povo. O Vaticano sabe disso, mas entende que são outros os caminhos que levam à santidade, e que há motivos que não convém aprovar. Por isso a santidade é também motivada por afectos e desafectos dos homens do poder. Nem tudo são transparências.
Nas Américas centrais já se venera São Óscar Arnulfo Romero, Pastor e Mártir, martirizado em plena missa pelos inimigos do evangelho. O povo já se encarregou de lhe chamar santo, e assim vai praticando a sua fé. O mesmo por terras brasileiras com D. Hélder Câmara, defensor dos mais pobres e grande animador da não-violência.
O tempo presente parece ir mais no sentido do culto da personalidade – a papolatria. Uma linha medieva que renasce na defesa do castelo. Quando Roma fala, todos se calam. Os novos tempos, de frágeis aparências, assim o exigem. Mas o Povo de Deus, por sua vez, continua a louvar o Senhor que é três vezes santo. Os outros santos serão sempre condicionados pela própria condição humana dos detentores do poder, que tem, na santidade decretada, uma das suas maiores forças.
É o Povo de Deus que faz os seus santos. Parece ser esse o caminho que todos entendem.
Santo, santo, santo, é o Senhor Deus Ressuscitado. Boas festas da Páscoa.
Manuel Emílio Porto (altodoscedros.blogspot.com)

       

sábado, 9 de abril de 2011

Pátio dos gentios

Recristianizar será, como o próprio verbo indica, voltar a cristianizar, voltar a ensinar a mensagem cristã. Tendo sempre em conta, como é óbvio, a sua aceitação por parte de quem a ouve. Não conquistar de novo, e muito menos reconquistar.
        Recristianizar é, pois, voltar a cristianizar. Mas, a quem? Como? Com quem? É a primeira questão.
Uma certeza: não poderá ser como foi da primeira vez. São outros os destinatários, outros os espaços, outra a mobilidade, e outros os apóstolos. Os “Paulos de Tarso” são outros, e outros são os gentios.
O tempo das conquistas e reconquistas não volta. Não se vê por aí um novo império prestes a cair, a converter-se, para, das ruínas, se levantar com nova classe dirigente, feita de sacerdotes e vassalos, escolhidos e segregados. Nem se prevêem expulsões de novos mouros. Esse renascimento não acontecerá.
A mensagem, embora a mesma, encontra outro terreno, outros espaços, outros gentios, e outros protagonistas. É um terreno aculturado, com influências de muitas origens. Povos de todas as partes do globo, religiosos, não religiosos, agnósticos e indiferentes. Um terreno global e exigir outros semeadores.
        As imagens valem o que valem, e aí vai uma. Quando se prepara uma terra para cultivar pela primeira vez, as sementes germinam e dão o fruto desejado. Quando se fazem sementeiras por vários anos seguidos, o terreno já não irá corresponder ao desejo do semeador, como da primeira vez. Outros vieram e também semearam. O terreno acomodou-se às sementes e a outras e a mais outras, e por fim, saturada de tanta semente e de tanto adubo artificial, mais podas e herbicidas corrosivos, só produz estereótipos, mal formações.
        As sociedades humanas serão um pouco isso mesmo, apesar da imagem não ser a melhor. Durante séculos, usos e costumes nascidos das sementes ideológicas da velha Europa, do cristianismo e de outras religiões, proliferaram. Nasceram na clandestinidade, quando a ágora era animada pelos pensadores da Grécia e de Roma, e libertaram-se com Constantino que lhe forneceu o ambiente de crescimento. Cresceram e deram fruto. Hoje, semeiam nos mesmos espaços, varridos, entretanto, por outras ideologias e outros interesses. A Europa que nos habituámos a ver já não é a mesma. É outra. Até há quem diga que desapareceu.
O “pátio dos gentios” que o Vaticano reinventa em Paris, é a tentativa de ir ao encontro dos pensadores de hoje, imagem paulina da primeira evangelização.
É um encontro para elites – “entre crentes e não crentes, como refere o Cardeal Gianfranco Ravasi” – na troca de pontos de vista – verso e controverso de realidades, sobretudo administrativas, algo difíceis de entender no tempo presente.
 Porquê Paris para este “pátio dos gentios”? Por “ser um estandarte da laicidade, um mundo interessado no confronte sobre grandes temas”, assim disse o Cardeal.
Mas, o que é certo é que todo o mundo está em adiantado estado de secularização. O Secular e o Sagrado são hoje conceitos apenas da mente. Apesar de tanta distinção que se quis implementar a estes dois conceitos no passado, andam hoje de tal maneira lado a lado, que mal se distinguem. No dia a dia dos povos, eles têm o mesmo sentido. É comum ouvir-se: “no templo sou uma coisa, fora do templo sou como tu”. A distinção está só na farda, ou na roupa domingueira.
Convém que se diga, no entanto, que um secular, hoje, não é um gentio dos tempos de São Paulo. (O dicionário diz assim: gentio – aquele que segue a religião pagã. Idólatra. Que não é civilizado. Selvagem). O homem secular, hoje, é um ser humano, civilizado, cidadão, laico. Quase o mesmo se diz do homem sagrado – um ser humano, civilizado, cidadão, laico.
Nem só do pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”. Foi assim entendido. E toda a gente já sabe que é assim. Mas nem sempre assim acontece.
Quando se procura primeiro o bem-estar, sem regra, sem piedade e sem ética, é que logo, de imediato, se diz: alto aí: não vale tudo, “nem só do pão vive o homem”!
Como todos sabem, as mentalidades não se mudam de um dia para o outro. Levam anos. Lentamente, tudo se torna laico. Os cânones ficam-se pelos livros. E por isso os termos passam a inverter-se: “Nem só da palavra vive o homem, mas do pão de cada dia”.
Sem pão ninguém sobrevive. Sem pão, a palavra de Deus é palavra vã. Porque pedir a Deus o pão de cada dia, sem fazer por ele, sem trabalhar, pode ser um insulto ao próprio Deus.
Daí, o quase desinteresse das práticas cristãs, quando as mesmas deixaram de dar sentido aos principais desejos do homem. Afinal, nunca deram de comer a ninguém, a não ser no milagre da multiplicação dos pães.
Dois pontos de vista importam sobremaneira. Primeiro, olhar para fora mais rapidamente, transformando “o pátio dos gentios” de Paris, em novos pátios espalhados pelo planeta, a falar e a implementar o saber e a cultura, e o pão para todos os homens, mulheres e crianças; ou seja, uma Igreja, lado a lado com a sociedade civil, empenhada na construção da cidade terrestre, caminho único em direcção à cidade celeste.
Segundo, olhar para dentro, libertando os crentes, de todas as condições, amarras e imposições morais e administrativas, de costumes ultrapassados, que só impedem a aceitação e prática plena dos ensinamentos de Jesus Cristo. Uma Igreja “Povo de Deus”, de todos, e onde todos participam cada um com a sua tarefa específica; e não uma igreja segregacionista, feita de classes maiores e menores, hierarquizada, feita de celibatários, desajustada ao mundo que pretende servir.
A propósito das festas da Semana Santa, na Espanha, o Cardeal Emérito de Sevilha, Carlos Amigo, dizia numa conferência, na embaixada do seu país em Roma, o seguinte: “a religiosidade popular é uma resposta à mensagem fria e intelectualizada da Igreja Católica, pois trata-se de uma celebração em que todos participam por igual”.
Muita gente seguiu com atenção o “pátio dos gentios” de Paris. Ainda não temos conhecimento de outros mais pátios em outras cidades, vilas e aldeias. Muitos esperam, alimentando esperanças, outros carregados de cepticismo. Alguns com recta intenção; outros e outras, quais fiscais da fé, como os “talibãs”, na busca de hereges para apedrejar.
As crises, quando vêm, atingem a todos por igual. Nem as religiões escapam. Promovem-se encontros para estudar, esclarecer, reformar, orientar. É o que vemos, e ainda bem.
 Mas a evangelização não é nova, é de sempre. Neste ponto nada há a dizer. Já dos protagonistas, duas coisas são evidentes: nem os “paulos de tarso” nem os “gentios de hoje” têm alguma semelhança com os da primeira evangelização. São da nossa época. Resta fazer a sua descoberta. É a primeira questão a resolver.
Manuel Emílio Porto (altodoscedros.blogspot.com)