D. José Policarpo, ainda não há muito tempo, disse, numa entrevista, que “teologicamente não há nenhum obstáculo à ordenação de mulheres”. Acrescentava que, nas circunstâncias actuais, “era melhor não se falar no assunto”.
Muitos comentadores se referiram às palavras do Cardeal, e as repercussões nos meios eclesiásticos não se fizeram esperar. Ao ponto do mesmo Cardeal, mais tarde, ter vindo esclarecer o que havia dito, quase dando o dito por não dito. Digamos que…terá levado um puxãozinho de orelhas!
Mas o assunto não morreu e continua activo e actual em meios próximos da Igreja. Com mais intensidade em sectores que já ultrapassaram as normas vigentes, e que se movimentam livremente nas comunidades, com plena aceitação destas, que são, quer se queira quer não se queira, a razão de ser da própria Igreja. Dentro das cúpulas da própria Igreja a questão não tem discussão. Parece ser assunto diabólico…”É melhor não se falar mais nisso!”
Neste apontamento introduzimos, com oportunidade, a questão da manutenção do celibato como condição para as ordens. É assunto recorrente, e volta a sê-lo de novo, agora com o governo irlandês a acusar o Vaticano de ter encoberto durante anos seguidos os abusos sexuais cometidos por clérigos. Ao ponto de um elemento do Vaticano pedir ao Papa a destituição de todos os bispos irlandeses, e do primeiro ministro irlandês afirmar que não compete ao Papa governar a Irlanda.
Começa assim a intensificar-se a perplexidade dos crentes, em todos os continentes, perante uma lei e a sua prática. Uma espécie de conflito permanente, difícil de compreender, numa instituição que insiste, por um lado, na consciência formada, e por outro, dando flanco aberto a uma condescendência permissiva. “Faz o que eu digo e não faças como eu faço”.
E a perplexidade ainda mais se acentua, quando se procura a solução nos mesmos remédios de sempre: rezar muito, encobrir e nada dizer. Há que salvar a dignidade da instituição, abafando e calando. “É melhor não se falar mais nisso”.
Não é de estranhar, pois, que por melhor juízo que se faça, cada vez se acentua mais a duplicidade de vida por parte de muitos que aceitaram cumprir a lei do celibato.
Por todos os continentes, a paisagem é esta: Uns, todos conservadores, tradicionalistas, integristas, puritanos e pudicos, movem-se pelos corredores das cúrias e dos passos episcopais a excomungar tudo e todos. Outros, liberais, universalistas, humanos, circulam no meio dos povos, ignorando os anátemas, orientando-se e solidarizando-se com os que vivem ao lado, vivendo e sentindo a vida. A única luz que levam consigo a indicar o caminho é a conformidade com os preceitos do Evangelho. Levam o essencial, o mais importante. E dizem que é mais importante a obediência à consciência do que às vozes provenientes das cúrias.
O Concílio Vaticano II não foi muito longe nos assuntos que envolvem a sexualidade humana. Mas deixou uma norma incontroversa que abre caminho á renovação e ao rejuvenescimento da vida da Igreja: “Toda a forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa por razão de sexo deve ser vencida e eliminada, por ser contrária ao plano divino”. Esta recomendação está por fazer, e é imperioso que se cumpra.
Durante muitos séculos, houve bispos e padres casados. Até houve papas casados. O casamento nunca foi, por lei divina, obstáculo ao desempenho do ministério.
Hoje, todos sabem, só na Igreja Romana, esta norma é exigida para exercer uma função eclesiástica. Em outras Igrejas reconhecidas essa norma não existe. A situação no mundo inteiro é de expectativa e descrédito em reformas. Do Vaticano surgem apelos à continuidade: nem mulheres clérigos nem celibato opcional. Só falta intimidar com a fogueira da inquisição. É melhor não se falar no assunto. É causa fechada. Apesar de tanta discórdia e de muitas “vergonhas” – são estas normas que conseguem manter o estatuto de grandeza e de poder.
É, afinal, a grande razão: manter o poder de grandeza acumulada pelos séculos. Quando o celibato se tornar opcional e as mulheres forem admitidas ao ministério, quase tudo se desmorona e cai em cacos. É o medo de tudo perder. A Igreja instituição vive cheia de medo.
Joaquin Pereia, bilbaíno, sacerdote e teólogo, na apresentação do seu livro “La jerarquia está usurpando a voz de la Iglesia”, à pergunta se havia mudado alguma coisa na Igreja, respondia assim: “as coisas na vida não são brancas ou negras. São grisalhas. O mesmo na Igreja. Eu creio que em alguns aspectos se avançou, e outros em que se retrocedeu. Parece-me que desde o Concílio Vaticano II se deu a confluência de dois grandes vectores: por um lado, neste momento, para um observador externo, o problema da direcção geral da Igreja que quer voltar aos bastiães antigos, e por isso retrocede, crispa-se, zanga-se, vive do medo e da preocupação por esse medo “laicista e secularista”…Isto é um desastre, porque não leva senão à irrelevância na igreja. E à seita. Ao gueto.” Como, à irrelevância? Perguntaram de novo. “Isso mesmo, irrelevância. A Igreja, se para alguma coisa existe, é para dizer uma Palavra à sociedade. Mas a sociedade não vai ouvir uma Igreja que diz: “ou passais por aqui, ou não há nada a fazer”. Por isso eu creio que no momento actual muitos cristãos se sentem no escuro. Só ouvem irrelevâncias, assuntos irrelevantes, e por isso debandam…
Mas há que dizer que o Concílio significou um momento extraordinário, que sintetizou o pensamento do Papa João XXIII: “que a Igreja sempre tem de reformar-se, com as janelas abertas ao mundo”.
Quando digo que “outra Igreja é possível”, refiro-me à igreja de Jesus, pois tenho a impressão que esta igreja que temos não é a igreja de Jesus.”
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Quando aqui chegámos, para dar por terminado este apontamento, tivemos conhecimento do seguinte documento, proveniente de 300 párocos austríacos, com a data do passado dia 19 de Junho:
“Nós, sacerdotes, estabelecemos, no futuro os sinais seguintes:
1 – Rezaremos, no futuro, em todas as missas, uma oração pela reforma da Igreja. Tomaremos a sério a palavra da Bíblia: “Pedi e recebereis”. Diante de Deus, existe a liberdade de expressão.
2 – Não negaremos, em princípio, a Eucaristia aos fiéis de boa vontade. Especialmente aos divorciados com segundo casamento, aos membros de outras igrejas cristãs, e, em alguns casos, também aos católicos que abandonaram a igreja.
3 – Evitaremos celebrar, na medida do possível, aos domingos e dias de festa, mais de uma Missa. É melhor uma liturgia da Palavra organizada localmente que as tounées litúrgicas.
4 – No futuro, consideraremos celebrar uma liturgia da Palavra com distribuição da Comunhão – uma Eucaristia sem sacerdote. Desta forma, cumpriremos a nossa obrigação dominical em tempo de escassez de sacerdotes.
5 – Não cumpriremos a proibição de pregar estabelecida para laicos competentes e qualificados e para professores de religião. Especialmente em tempos difíceis é necessário anunciar a palavra de Deus.
6 – Comprometemo-nos a que cada paróquia tenha a sua própria cabeça responsável: homem ou mulher, casado ou solteiro, a tempo inteiro ou parcial. Não haverá fusões de paróquias, a não ser mediante um novo modelo de sacerdote.
7 – Por isso, vamos aproveitar todas as oportunidades para manifestarmos publicamente a favor da ordenação de mulheres e de pessoas casadas. Vê-los-emos como companheiras e companheiros, bem-vindos ao serviço pastoral.
Sentimo-nos solidários com os companheiros que por se terem casado já não podem exercer as suas funções, e também com aqueles que ainda mantém uma relação contínua prestando serviços como sacerdotes.
Ambos os grupos, com a sua decisão, seguem a sua consciência como nós fazemos com a nossa proposta. Nós vemo-los, assim como ao papa e aos bispos, como nossos irmãos. Não sabemos que mais se possa ou deva exigir à fraternidade. Um só é o nosso Mestre, e todos nós somos irmãos.
É isto o que queremos que suceda, é por isto que queremos rezar. Amen.
Domingo da Trindade, 19 de Junho de 2011.
Finalmente, o meu comentário. Sempre admirei o Cardeal D. José Policarpo. Ainda hoje o admiro. Ainda mais por saber que ele, pessoalmente, também está de acordo com as reformas que muitos proclamam. Só que, no posto em que se encontra, nada mais pode dizer. Disse o que lhe parecia certo. Esqueceu-se que era Cardeal. E levou um puxão de orelhas. Muitos andam calados, cheios de medo também.
Alguns leitores desta área da cultura religiosa, dizem-me: “continua, sempre alguma coisa aparece, sempre alguma coisa se diz”. Acrescento que estou muito longe de outros tempos. Aprendi por mim próprio. Tiro tempo para ler e estar a par do que se diz. E continuo a aprender. Melhor não falar nestes assuntos? Pelo contrário, escrevendo claramente….sem complexos.