A tia Rosinha da Canada da Rocha, de oitenta e tal anos, andava atarefada na colheita das sementes de nabo para o ano seguinte. Era a meio da tarde, e o sol de Setembro batia quente nas paredes brancas do balcão. O tempo ia de feição para secar aquelas sementes. Quando foi dentro, à cozinha, para ver se os inhames precisavam de mais água, bateram à porta. Veio, apressada, e perguntou:
- Quem é?
- O João da Carolina.
- Não acredito. O João da Carolina?!
- Sim, sim, o João.
- Deixa-me cá ver. Olha, olha, quem havia de aparecer! Há tantos anos desaparecido para essas Américas, sem dar sinal! Entra, e senta-te ali naquela caixa, e dá cá um abraço e um beijo, que eu andei contigo ao colo.
E continuando, insistiu: Diz-me lá, conta-me a tua vida que eu gosto de saber; às vezes dizem-me umas coisas, mas nunca fico sabendo, até porque já oiço mal.
O João, melhorando-se no lugar onde se sentara, começou:
- Olhe, os primeiros anos foram muito maus. Para a América fui no dia 8 de Janeiro de 1950, num grande navio. A tia Rosinha lembra-se daqueles grandes navios italianos que passavam aqui no canal? Pois, foi num desses. Na altura tinha vinte anos. Embarquei em Ponta Delgada. Foram vários dias de viagem, já não recordo quantos, ao certo.
Fui com carta de chamada. Quando cheguei, mandaram-me lavar roupa e pôr a secar. Fazer limpezas domésticas. Ganhei os primeiros dólares e, passados dois meses, num belo dia, meti-me no comboio e dei comigo na Califórnia.
Aí conheci um homem da Graciosa que me indicou um lugar para trabalhar. Num grande rancho de gado. Foi o melhor que me podia acontecer, pois como sabe, aqui nesta ilha, foi sempre o que soube fazer: tratar de gado.
Casei, melhorei a vida e vivi muitos anos bem, desafogadamente. Mas depois… a mulher com quem tinha casado, deixou-me, quis ir viver com outro, e fiquei sozinho mais um filho que ela me deu.
Hoje estou reformado, vivo sozinho numa casa que tenho nos arredores de Sacramento. À volta, tenho árvores de fruta, umas aves em cativeiro, e por ali vou vivendo. Já vou com 70 anos. Não tenho mais nada. O meu filho casou e foi para as ilhas Guam, onde por lá anda a pescar e faz a sua vida. Agora só me restam os dias finais, que só Deus sabe quantos. Mas queria, antes de regressar, cumprir uma promessa ao Senhor Espírito Santo – um gasto de coroa.
- Vais cumpri-lo, aqui, na nossa igreja?
- Pensava ser aqui. Aqui é que nasci e foi naquela igreja que me baptizei. O Padre Jacinto (o Velho), é que me baptizou.
- Está certo. Não acredito que leves a coroa na casa onde nasceste, pois ela já caiu. As águas infiltraram-se e aquilo foi apodrecendo tudo. Vai ser na casa do teu primo?
- Não, não. Vou usar a casa grande, o salão. Talvez a direcção autorize. Vou falar primeiro com o presidente. A tia Rosinha vai ajudar-me a lembrar quem é que vou convidar, e quais as coisas todas que são precisas.
- Tudo o que puder, faço de mil amores. E o Padre? Olha, que ele vive aqui ao lado, na freguesia vizinha, mas vem ao Domingo. Vais ter que combinar com ele o dia e a hora. Combina com ele. Vais ter sorte, que ele é um moço bem ensinado.
E, continuando, mais disse:
- Hoje em dia não é como antigamente. Os padres são poucos, dizem, e não parecem lá muito pacientes…, Mas este é bom.
- Está bem, tia Rosinha. Daqui a dias volto para falar de novo consigo. Adeus.
Setembro já ia alto e o Outono andava por perto. Naturalmente que o João vai passar aqui o Inverno. Foi uma pergunta que ficou por fazer. Há-de ser da próxima vez quando ele voltar, pensou consigo a tia Rosinha.
Não passaram três dias e o João estava de volta.
***
- Então, o que resolveste?
- Olhe tia Rosalina, vai ser no segundo Domingo de Páscoa do ano que vem.
- Quer dizer que vais passar aqui o inverno todo!
- Sim, sim. Já foi com essa intenção. Tenho tempo bastante para recordar essa gente, e preparar os dias de festa. Não será uma coroação de muitas centenas de convidados, mas quero, pelo menos, convidar todos os rapazes do meu tempo e outros que conheci. A freguesia também não cresceu muito e por isso não vai ultrapassar as quinhentas pessoas.
- E a carne, o pão e as sopas?
- Já falei com o José da Emília que me vende dois bois. A senhora Jose fa, que costuma fazer sopas muito boas, e que ainda é minha parente, também me disse que se encarregava delas, e o vinho há-de ser aqui da freguesia. Já me falaram em várias adegas que vendem vinho. Não vai faltar nada.
- E a Filarmónica, convidas?
- Vou falar à que fica mais próxima, a do Juncal.
- O Padre falou-te nos cantores da Capela?
- Falou. Ele diz que se encarrega de dizer a eles. Que eles costumam também ir ao jantar das sopas, sem mais qualquer remuneração.
- E os foliões? Não te esqueças deles… O José da Perpétua já morreu, mas há outros que o substituem muito bem. Sempre a gente entende melhor o que eles cantam. Com o José da Perpétua ninguém percebia nada. Era só ióoo, divi.. nóooo.. spiró..santóá… uma lengalenga que só dava para rir!
- Também já falei com os foliões. Com o Joaquim e o irmão e com um outro que é ferreiro. Dizem que sim senhor, com muito gosto.
- Então, tens a tua festa planeada. Agora é só ir comprando o que é preciso. Farinha, ovos, manteiga e outros sabores próprios daqueles dias. Não vai faltar quem te lembre e quem te ajude. Nestas coisas do Senhor Espírito Santo, todos se chegam para dentro. Ainda é assim. E há muitos que, quando são convidados, costumam levar ao mordomo alguma coisa para a festa. São costumes antigos.
- Adeus, até daqui a uns dias. Vou ir ao Faial ver uns amigos. Irei depois às Velas e ao Topo. Quero ver se estou de volta pelos Santos.
Assim aconteceu. A Senhora da Conceição, O Natal, o Ano Novo, a Matança do Porco, e o Carnaval foram os acontecimentos revividos de tempos passados. Até que chegou a Páscoa e a Pascoela.
***
Já todos os preparativos estavam no sítio certo. Um início de semana de trabalho, de rezas e de cantigas tradicionais. As cozinheiras não tiveram mãos a medir. Pães dentro do forno, pães fora do forno, estendidos na arquibancada, cobertos com grandes mantas. Foi um tal aviar. Mais os biscoitos e “brindeiras”. Alguidares ora cheios, ora vazios.
As carnes – no campo da horta do José Joaquim, que ficava ali perto – foram sendo preparadas para enxugarem. Vieram depois, das adegas, os vinhos. Os queijos da fábrica. E as lapas para os desejos do fim do dia, após as canseiras e as rezas do terço ao Senhor Espírito Santo, de quantos se ocuparam nos afazeres.
Finalmente, o dia da Coroação. Missa às 11 horas. Com pouco atraso do senhor Padre.
- Olha, lá vem o senhor Padre, diz a tua Rosinha.
***
A procissão para a Igreja começava também. Os foliões já davam sinais, cantando loas ao Mordomo e ao Senhor Espírito Santo. E já os cantores na Capela começavam “Vem Espírito Santo…”
A Missa foi cantada pelo Grupo Coral da Paróquia. E não dispensou no momento da coroação o “Veni Creator” de João Jordani, a quatro vozes, o tal que fazia estremecer os cantores, de lenço na mão a limpar o suor que escorria pelo pescoço abaixo.
Após a missa e em procissão, ao som do tambor, em frente à porta da entrada da Casa do Povo, novamente a Capela mais os Foliões entoam o Magnificat, o cântico de acção de graças. De seguida, os símbolos do Espírito Santo são colocados em altar dignamente florido e enfeitado e todos os convidados ocupam os seus lugares no grande salão.
O João da Carolina quis que a tia Rosinha ficasse junto dele, na mesa, durante o jantar. Assim aconteceu. Foi ocasião para mais uns dedos de conversa.
- Quando ouvi cantar o Veni Creator, começou a tia Rosinha, lembrei-me do António Machado, do João Soares, e de outros cantores, como os Biscaias, os Fragas, os Lourenços, o Francisco Janeiro, o Soares e o Manuel Guiné. Cada um fazia o seu solo. Garganteavam que agente gostava de ouvir. Era mesmo bonito. Hoje são umas cantigas meias solteiras, meias corriqueiras, cada um para a sua banda…
- Ó tia Rosalina, pelas Américas é a mesma coisa. São cantigas do ié, ié, de comer, de beber, de rodopiar, balancear e estar sempre em pé!
- Tiveste muita gente na coroa. Mas isto, aos domingos, vai pouca gente á Igreja. Mas os padres também não se importam lá muito com isso. Há dias, um veio aqui para confessar, mas não apareceu ninguém. Quando saiu disse que “isto era uma terra de santos”. Já poucos se chegam.
- Eu já não digo nada. Estou há muitos anos fora. Quem se lembra do que isto era e do que agora temos, faz pensar. Mas, são os tempos de hoje. E, olhe tia Rosinha, não são os padres que vão salvar a vida da gente…Tive um velhote amigo que costumava dizer: padres, é largá-los com corda e tudo…
- Vai mais uma pinga, tia Rosinha? Olhe que ela é boa. É da adega do Manuel José. Todos dizem que é um bom vinho. Eu gosto dele.
- Não, agora não deites mais. Está bom assim.
Veio a carne assada. Veio o arroz doce. Mais uma pitada de conversa, e por ali se ficaram os comensais que passavam a agradecer o convite e a desejar felicidades.
Entretanto voltam os foliões, desta vez para agradecer:
“Estas mesas foram postas
Hoje com grande amor;
Foram postas em louvor
Do Altíssimo Senhor.
Por aqui vamos andando
Ao toque deste tambor;
Aqui estão os vossos servos
Ó meu Altíssimo Senhor.”
Pela tarde adiante, algumas sopas, pão e doces foram levados aos doentes da freguesia.
Finalmente, todos se retiram, aos poucos. E os foliões, já mais alegres e bem dispostos, vão cantando em tom jocoso:
“Recolhei-vos, pomba branca!
Recolhei-vos!
Que anda caçador em terra!”
Nos dias seguintes, foram as limpezas. Totais. O João era um homem satisfeito. Tinha cumprido a sua promessa. Lembrou os tempos da viagem. Os tempos das lavagens de roupa e das limpezas na América. Os tempos felizes do casamento. Os tempos difíceis que vieram. A tranquilidade da saúde. E o bem-estar que o Senhor Espírito Santo lhe trouxera.
- Então, estás satisfeito? Perguntou a tia Rosinha.
- Sim. Quem paga o que deve…
- Tem um lugar no céu!
- Ó tia Rosinha, isso já está ultrapassado. O céu é neste mundo. No outro, sabe-se lá. O mais importante é dignificar a vida, e em qualquer lugar do mundo. Ainda não há muito tempo que li estas palavras num jornal da Igreja Católica, lá na Califórnia.
O João da Carolina era um homem satisfeito.
***
Foi mais uma coroação. Um gesto levado a efeito por quem ainda tem fé no Senhor Espírito Santo. O único Deus das gentes e dos “gentios” destas ilhas. Quem tem dúvidas?
Nas coroações há pessoas de todos os lados. Pessoas das missas dominicais sem falta, pessoas das missas de defuntos, pessoas das festas principais, pessoas de nenhuma missa. Pessoas de outras religiões ou seitas. Casados e divorciados.
O Espírito é Santo, Santíssimo, abrangente, ecuménico, universal, respeita a todos por igual e nada exige em troca a não ser fazer o bem sem olhar a quem. Toca a todos, sem distinção. É o Espírito do Povo de Deus. O Espírito mais universal que se conhece.
Soubessem disso os altos responsáveis eclesiásticos e talvez melhor servissem os povos a quem prometeram servir, sem reservas. Possivelmente teriam mais colaboradores, possivelmente menos se lamentariam.
As festas do Espírito Santo são o nosso maior valor religioso que temos. Implantado há muitos anos, é o lugar onde todos têm lugar e onde todos se sentem bem. Não cremos no aparecimento de outro, com capacidade de “renovar a face da terra”. Natália Correia acertou em cheio quando escreveu as primeiras palavras do hino da Região: “deram frutos a fé e a firmeza…”
Boas Festas do Espírito Santo para todos.
Manuel Emílio Porto (altodoscedros.blogspot.com)