Ocorrem-me imagens de tempos idos, quando o velho “João Janeiro” levava consigo algum neto para as lavras, situadas na freguesia da Piedade. No Caminho Largo, na Canada do Império, na Ponta da Ilha, no Caminho de Cima ou no Cabeço da Altamora.
Duas boas juntas de bois puxavam o arado, enquanto o neto, atrás da rabiça, no rego aberto, lançava o grão que havia de dar a maçaroca. O sol da Primavera ainda era manso e por vezes a chuva impedia que o trabalho do dia ficasse completo. Há que abrigar, vem aí mais um sargo!...
Ocorrem-me imagens de tempos idos, de idas e vindas às novenas da Piedade, passando pelas sementeiras de Abril e Maio. Olha, o milho nasceu bem e tem maçarocas gradas! Vai dar uns 30 alqueires!
Sempre na companhia de devotos e devotas da Senhora, os caminhos velhos do Miradouro e os novos da nova estrada para o Norte eram sempre percorridos ao som de cantigas que ecoavam por entre faias, incensos e urzes, à luz do luar e do céu estrelado.
Era Setembro e os frutos da terra já maduravam. Alguma maçaroca se colhia para assar no dia seguinte. O neto tinha esse privilégio. Vai apanhar uma!
Ocorrem-me imagens de tempos idos, quando a novena começava com a preparação da luz necessária, feita na sacristia pelo próprio Padre Soares. Era a luz incandescente a petróleo. Desfeita a escuridão da noite, vinham as condições de se ver alguma coisa: ler as orações e as letras do canto.
As romarias dos tempos idos não eram de muita gente. Imperava o isolamento, poucos tinham rádio, a estrada para o norte da Ilha estava a fazer-se. Trabalhava-se de sol a sol nos campos, nas vinhas e nos matos. Chegava-se tarde a casa, cansado, já com vontade de encostar à cama. Não havia o automóvel. Só a pé ou de burro.
Era o tempo do vapor da carreira de quinze em quinze dias, dos iates, da caça à baleia e dos primeiros atuneiros. Só às tantas da noite se saboreava o aconchego do lar. Já não havia tempo de mais nada….
Nas ofertas da festa, eram os produtos da terra: inhames, batatas, cebolas, figos, uva, melões, melancias, galináceos, bolos, coscorões, doces. A Filarmónica dava os primeiros passos, e tocava num estrado sobre as paredes do adro.
As festas da freguesia da Piedade – ao longo de todo o mês de Setembro, nas suas três invocações – Senhora da Piedade, Senhora da Rocha (hoje Senhora da Boa Viagem) e Senhora das Mercês – são ligações do coração do homem para o homem. Do homem que procura arrimo e amparo para as agruras da vida. Do homem isolado que suplica misericórdia, que suplica uma feliz deslocação para os que vão e vem de longe, do homem que sabe agradecer a felicidade dos desejos conseguidos.
Este monte de imagens ocorridas de tempos idos é uma espécie de síntese da terra que habitámos, como sendo a melhor terra do mundo. Foram a imagem desta Ponta da Ilha que merece hoje o reconhecimento de quantos a habitam e teimam em habitar. Razão tem os que lutam por melhorá-la, usando e abusando da santa teimosia dos que acreditam que tudo é possível.
Hoje, os tempos são outros. Tudo anda a modificar-se. Para melhor, sem dúvida. As mentes, por vezes, sofrem de esquecimentos. E o futuro tem urgência em saber que nada pode ser esquecido nem destruído, mas melhorado, reformado e repensado se for preciso. Para que o desejo e a utopia tenham consistência e o assento seja na primeira fila.
As maçarocas, hoje, são outras. Outros os meios. Outros os processos. São três ainda as Senhoras da Piedade. Ainda podem muito, mas já não são como eram. São menos milagreiras. Compete aos homens fazer o que lhes compete fazer. Ou melhor: continuar a fazer o que ainda está por fazer. “Fia-te na Virgem e não corras, se queres ver como é….”
Os tempos idos têm de dar lugar aos tempos novos que já chegaram e que aí vêm numa pressa desalmada. O que hoje serve, amanhã já não serve. Toda a atenção é pouca, perante tanta correria vertiginosa!
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escrito na ortografia antiga