sábado, 9 de abril de 2011

Pátio dos gentios

Recristianizar será, como o próprio verbo indica, voltar a cristianizar, voltar a ensinar a mensagem cristã. Tendo sempre em conta, como é óbvio, a sua aceitação por parte de quem a ouve. Não conquistar de novo, e muito menos reconquistar.
        Recristianizar é, pois, voltar a cristianizar. Mas, a quem? Como? Com quem? É a primeira questão.
Uma certeza: não poderá ser como foi da primeira vez. São outros os destinatários, outros os espaços, outra a mobilidade, e outros os apóstolos. Os “Paulos de Tarso” são outros, e outros são os gentios.
O tempo das conquistas e reconquistas não volta. Não se vê por aí um novo império prestes a cair, a converter-se, para, das ruínas, se levantar com nova classe dirigente, feita de sacerdotes e vassalos, escolhidos e segregados. Nem se prevêem expulsões de novos mouros. Esse renascimento não acontecerá.
A mensagem, embora a mesma, encontra outro terreno, outros espaços, outros gentios, e outros protagonistas. É um terreno aculturado, com influências de muitas origens. Povos de todas as partes do globo, religiosos, não religiosos, agnósticos e indiferentes. Um terreno global e exigir outros semeadores.
        As imagens valem o que valem, e aí vai uma. Quando se prepara uma terra para cultivar pela primeira vez, as sementes germinam e dão o fruto desejado. Quando se fazem sementeiras por vários anos seguidos, o terreno já não irá corresponder ao desejo do semeador, como da primeira vez. Outros vieram e também semearam. O terreno acomodou-se às sementes e a outras e a mais outras, e por fim, saturada de tanta semente e de tanto adubo artificial, mais podas e herbicidas corrosivos, só produz estereótipos, mal formações.
        As sociedades humanas serão um pouco isso mesmo, apesar da imagem não ser a melhor. Durante séculos, usos e costumes nascidos das sementes ideológicas da velha Europa, do cristianismo e de outras religiões, proliferaram. Nasceram na clandestinidade, quando a ágora era animada pelos pensadores da Grécia e de Roma, e libertaram-se com Constantino que lhe forneceu o ambiente de crescimento. Cresceram e deram fruto. Hoje, semeiam nos mesmos espaços, varridos, entretanto, por outras ideologias e outros interesses. A Europa que nos habituámos a ver já não é a mesma. É outra. Até há quem diga que desapareceu.
O “pátio dos gentios” que o Vaticano reinventa em Paris, é a tentativa de ir ao encontro dos pensadores de hoje, imagem paulina da primeira evangelização.
É um encontro para elites – “entre crentes e não crentes, como refere o Cardeal Gianfranco Ravasi” – na troca de pontos de vista – verso e controverso de realidades, sobretudo administrativas, algo difíceis de entender no tempo presente.
 Porquê Paris para este “pátio dos gentios”? Por “ser um estandarte da laicidade, um mundo interessado no confronte sobre grandes temas”, assim disse o Cardeal.
Mas, o que é certo é que todo o mundo está em adiantado estado de secularização. O Secular e o Sagrado são hoje conceitos apenas da mente. Apesar de tanta distinção que se quis implementar a estes dois conceitos no passado, andam hoje de tal maneira lado a lado, que mal se distinguem. No dia a dia dos povos, eles têm o mesmo sentido. É comum ouvir-se: “no templo sou uma coisa, fora do templo sou como tu”. A distinção está só na farda, ou na roupa domingueira.
Convém que se diga, no entanto, que um secular, hoje, não é um gentio dos tempos de São Paulo. (O dicionário diz assim: gentio – aquele que segue a religião pagã. Idólatra. Que não é civilizado. Selvagem). O homem secular, hoje, é um ser humano, civilizado, cidadão, laico. Quase o mesmo se diz do homem sagrado – um ser humano, civilizado, cidadão, laico.
Nem só do pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”. Foi assim entendido. E toda a gente já sabe que é assim. Mas nem sempre assim acontece.
Quando se procura primeiro o bem-estar, sem regra, sem piedade e sem ética, é que logo, de imediato, se diz: alto aí: não vale tudo, “nem só do pão vive o homem”!
Como todos sabem, as mentalidades não se mudam de um dia para o outro. Levam anos. Lentamente, tudo se torna laico. Os cânones ficam-se pelos livros. E por isso os termos passam a inverter-se: “Nem só da palavra vive o homem, mas do pão de cada dia”.
Sem pão ninguém sobrevive. Sem pão, a palavra de Deus é palavra vã. Porque pedir a Deus o pão de cada dia, sem fazer por ele, sem trabalhar, pode ser um insulto ao próprio Deus.
Daí, o quase desinteresse das práticas cristãs, quando as mesmas deixaram de dar sentido aos principais desejos do homem. Afinal, nunca deram de comer a ninguém, a não ser no milagre da multiplicação dos pães.
Dois pontos de vista importam sobremaneira. Primeiro, olhar para fora mais rapidamente, transformando “o pátio dos gentios” de Paris, em novos pátios espalhados pelo planeta, a falar e a implementar o saber e a cultura, e o pão para todos os homens, mulheres e crianças; ou seja, uma Igreja, lado a lado com a sociedade civil, empenhada na construção da cidade terrestre, caminho único em direcção à cidade celeste.
Segundo, olhar para dentro, libertando os crentes, de todas as condições, amarras e imposições morais e administrativas, de costumes ultrapassados, que só impedem a aceitação e prática plena dos ensinamentos de Jesus Cristo. Uma Igreja “Povo de Deus”, de todos, e onde todos participam cada um com a sua tarefa específica; e não uma igreja segregacionista, feita de classes maiores e menores, hierarquizada, feita de celibatários, desajustada ao mundo que pretende servir.
A propósito das festas da Semana Santa, na Espanha, o Cardeal Emérito de Sevilha, Carlos Amigo, dizia numa conferência, na embaixada do seu país em Roma, o seguinte: “a religiosidade popular é uma resposta à mensagem fria e intelectualizada da Igreja Católica, pois trata-se de uma celebração em que todos participam por igual”.
Muita gente seguiu com atenção o “pátio dos gentios” de Paris. Ainda não temos conhecimento de outros mais pátios em outras cidades, vilas e aldeias. Muitos esperam, alimentando esperanças, outros carregados de cepticismo. Alguns com recta intenção; outros e outras, quais fiscais da fé, como os “talibãs”, na busca de hereges para apedrejar.
As crises, quando vêm, atingem a todos por igual. Nem as religiões escapam. Promovem-se encontros para estudar, esclarecer, reformar, orientar. É o que vemos, e ainda bem.
 Mas a evangelização não é nova, é de sempre. Neste ponto nada há a dizer. Já dos protagonistas, duas coisas são evidentes: nem os “paulos de tarso” nem os “gentios de hoje” têm alguma semelhança com os da primeira evangelização. São da nossa época. Resta fazer a sua descoberta. É a primeira questão a resolver.
Manuel Emílio Porto (altodoscedros.blogspot.com)