quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Do Natal do "Atlântida" na Ponta da Ilha... ao Natal dos "Teólogos" no grande corredor superior

        O programa “Atlântida” do Natal de 2011 abraçou toda a gente. Dos Açores, do Canadá e das Américas. Foi até aos lugares onde há gente das ilhas. Cumpriu a sua missão de serviço público. Esperemos que o senhor ministro Relvas não corte a relva toda, na RTP Açores, como parece querer cortar.
 Se assim acontecer, desculpem a ironia, pode bem dar-se o caso de, ter sido a última viagem do programa, passar a haver menos serviço público, e o senhor ministro ficar a ser conhecido como o ministro corta-relvas. Para depois, se poder exclamar, como o poeta: “já não vem ninguém”, e o povo completar: o ministro cortou tudo. O que seria desolador para uma autonomia que ainda há pouco nasceu. Não seria aborto, já de si mau; seria infanticídio, que é pior.
        Feita esta observação crítica (em nada partidária, bem entendido), e relevando a importância da ligação fraterna com toda a comunidade açoriana, espalhada pelos quatro cantos do mundo, permitam-me que releve um aspecto que terá ficado na obscuridade, após a exibição pública do programa. Foi um programa cultural, mas também de sabor pastoral.
        Por muito que se queira dizer, separando conceitos, afastando sensibilidades, estão intimamente ligados entre si. Cultural e pastoral, dentro da Igreja Católica, são adjectivos que andam sempre de braço dado.
        Todos os componentes que intervieram na parte musical deram mostras da sua capacidade criativa. Do que são capazes de fazer. E o mesmo sucedeu com todos os outros participantes, mormente pelo seu criador/apresentador, sobejamente conhecido, e por outros que deram o seu testemunho qualificado.
 Na execução dos números musicais, dentro das suas limitações - que as tem - o Coro trouxe ao de cima os valores do natal cristão, nas suas vertentes culturais e religiosas.
                               ***
        Passadas algumas horas, e sentado a escrever duas linhas a propósito, lembrei os serões natalícios de outrora, no grande corredor dos teólogos de Angra, enfeitado de pinheiros, criptomérias e outras verduras, com luzes e luzinhas embrulhadas em papel colorido, ouvindo suavemente os alunos teólogos, (a capela da instituição) acompanhados ao piano pelo Artur Goulart, sob a direcção do Armindo da Luz, executando o vilancico “Nasceu, nasceu, pastores…”, o “Noite Feliz”, ou ainda o António Cordeiro, o Silvino Amaral e o José da Conceição, a executar uma bilbaína que começava assim: De colores se vesten los campos en la primavera… Mais as poesias, mais os pequenos trechos lidos, mais algum pequeno extracto de comédia ou de opereta. Costumes internos de todos os anos, de todos os natais, de todos os cursos, sempre com novos protagonistas, de todas as consoadas e de todos os presépios, armados nas redondezas da porta de entrada, com acesso à sala de música - sala de aprender e de ensaiar. Sala de ouvir atentamente o mestre, guia seguro de vozes e emoções. Este foi um programa que nos transportou a todos estes lugares e tempos recuados, menos recuados e mais recentes. Levou-nos:
- Aos primeiros passos, na seara, às primícias musicais, carinhosamente amparadas pela já idosa D. Alice Borba, organista competente, nas novenas da Conceição e do Natal, na Angra de 1963, sem esquecer a primeira visita pastoral. Uma visita tão atribulada que deixou sua reverendíssima desorientado, borrando-se todo de tinta, quando tombava o seu juízo negativo no livro de tombo da paróquia; na falta de acólitos qualificados, desolado, dizia: quem pega aqui nas pontas da capa? Uma tragédia!..
- Aos teatros e aos ranchos de Natal, do Galeão dos “amaros”, "azevedos", “correias” e “tarimbas”, sob os olhares "atentos e inquisitórios" do Monsenhor e do Reitor; ao primeiro rancho de Natal que o condutor José Devesas acidentou na valeta da estrada perto do cemitério da Piedade por altas horas da noite, e que o companheiro de oficio, Miguel, dormindo na Ribeirinha e sabendo do acidente, socorreu prontamente; sem esquecer, de novo, a segunda visita pastoral, pelo porto da Prainha, em dia de muito inverno, na lancha Espalamaca, e.... outra tragédia: sem vinho nas galhetas! - o começo, da firme vontade, de não voltar a receber terceira visita pastoral; 
- À tropa da guerra e aos natais de Sanza Pombo; das viagens à fronteira, ao Quango, e ao Sul de Moçamedes e às bebedeiras de um coronel amargurado com a esposa, ausente em Lisboa, sofrendo de doença oncológica, com morte anunciada; ainda a Cabinda e ao Maiombe, com mais um Natal, onde se encontraram os guerrelheiros inimigos para os primeiros passos da paz há muito desejada;
- À terra-mãe, ilha negra, terra de baleeiros e pastores do santo abade Antão; terra do salvamento do Órgão de Tubos com o Padre Trigueiro; terra dos xilofones da Escola do Centeno, do Manuel Xavier, do Costa e da Regina do "Grupo de Cantares"; terra que foi do Padre Rogério e da fundação do Grupo Coral que sempre incentivou enquanto  viveu junto dele; terra que quase viu destruido o trabalho que deixou, por um estranho clérigo vindo de terras distantes; terra das novenas do Bom Jesus.
 - Aos natais de hoje e de sempre. Sempre com música. Porque o Natal tem sempre música, em qualquer lugar, com qualquer instrumento. Até com um simples assobio. No meio das maiores tormentas, tempestades, conflitos e guerras.
        No programa televisivo não houve, nem comédia, nem tragédia. Houve a representação, alusiva ao presépio, pelas crianças da freguesia, houve a poesia de Dias de Melo, dita por quem sabe, houve os testemunhos dos usos e costumes natalícios, e houve a música coral.
E também a presença do jovem pároco e coralista João Ponte, que, apesar dos compromissos já assumidos, soube conciliar, dando ali o seu testemunho, sem complexos nem tibiezas; um luzeiro, no meio do deserto negro da ilha; testemunho que mais reforçou a lembrança de outros tempos, e o contraste com os tempos presentes.
O programa “Atlântida” do Natal de 2011 deu-nos a lembrança, fugaz embora, da década de 50/60 do Seminário de Angra. Por isso, e sobretudo por isso, o programa, gravado na Ponta da Ilha foi, não só cultural mas também de sabor pastoral. Apesar de ter sido feito pela laicidade de hoje, acabou por ser um reflexo dos movimentos culturais da Angra eclesiástica do século passado.
 Foi um reflexo, sim, desses anos já longínquos. Reflexos que estão, infelizmente, a desaparecer, a desaparecer cada vez mais.
A verdade é que já não existe um Coelho de Sousa, um Antonino Tavares, um Edmundo Oliveira, um Piques Garcia e tantos outros – artistas da beleza e do belo.
 E ainda de outros, que, felizmente, fazem parte do nosso viver quotidiano, marcam a sua presença válida nos lugares onde residem. Exemplos: o José Rodrigues, o Armindo da Luz, o Artur Goulart, o António Cordeiro, o Avelino Soares, o Agostinho Quental, o António Moniz, o Manuel Azevedo, o José Gabriel, o Carlos Sousa, o António Dionísio, o J. Francisco Costa e outros que a memória já não abarca. Sentimos a sua presença, não só na feitura do programa, como, sobretudo, quando nos sentámos a vê-lo, no televisor. Esta crónica é dedicada a todos estes e outros que conhecemos, e com os quais tivemos a felicidade de conviver na santa casa mimosa de Deus.
Terão os responsáveis de hoje, visto este programa? Não sabemos. Se o viram, terão tirado as suas conclusões. Nós tiramos as nossas.
Foi um programa feito por laicos, que fazem o que podem e sabem, e para quem o fazem. Sabem o que o público deseja. Vivem dentro da comunidade e com ela se identificam. Porque se assim não fosse, nada teria acontecido. É importante acreditar, viver e sentir a comunidade.
Para os jovens de hoje, aconselho que alimentem o espírito, que dá vida e sabor aos dias da vida terrena. Boas Festas e Feliz Ano Novo.
        escrito na ortografia antiga
            altodoscedros.blogspot.com
       
       

domingo, 25 de dezembro de 2011

Pela noite de Natal....

“Pela noite de Natal, noite de tanta alegria, caminhando vai José, caminhando vai Maria” – palavras populares de uma quadra popular natalícia – acompanharam-me, na mente, durante o percurso das Lajes por São Roque até Ribeirinha.
        Para decorar o pensamento, mandei que o leitor de CDs da viatura fosse rodando o CD NATAL: “Partiram os três reis Magos”, “Natal… na província neva”, “Canção pastoril”, e outros mais. O destino era a missa do Galo, com passagem para uma visita familiar, no norte da ilha.
 Prosseguindo, e já na Terra Alta, as luzes da ilha Dragão, ao lado, bem vivas, pareciam luzes vindas do Oriente, anunciando qualquer coisa de inusitado. Acompanharam-me sempre até à gruta de Belém – a pequenina igreja da terra natal que o ministro Relvas quer varrer do mapa.
Contrariando costumes antigos, a “Missa do Galo” foi às 21 horas. O que não tem nada de extraordinário, já que noutras partes do mundo, o mesmo terá acontecido. A hora da meia-noite, na medida do tempo, não é a mesma no mundo inteiro. Os fusos horários assim o indicam. Por isso, essa coisa da missa da Meia-Noite varia de lugar para lugar. É uma questão puramente racional. Não tem nada de dogmático.
É, todavia, motivo de ironia, continuar a dizer “Missa da Meia” e mais ainda “Missa do Galo”, pelas 21 horas, já que não é fácil ouvir os galos a cantar àquela hora da noite, depois do sol poente. Se por ventura acontece, logo se dirá que é de mau agoiro. Galos, a cantar a esta hora? Mau agoiro, são desgraças de certeza!... Ouvi exclamar muitas vezes.
Da celebração litúrgica que ajudei a cantar, ficou-me a convicção de que ainda as pessoas aparecem. Não, todavia, com a intensidade dos tempos mais antigos. O que não é de estranhar, no contexto social dos tempos que vivemos.
        Se a “Missa do Galo” ou Missa da Meia-Noite é às 21 horas, é questão menor. As convicções suportam as pequenas mudanças. Porque é na convicção da mente e do coração que reside o suporte do acto de fé.
        No regresso, por outro caminho – longe dos olhares atentos e camuflados do “santo ofício”, de feminino vestida pelas costas do norte da ilha – o pensamento foi direito para o “canto” do galo, que terá de fazer-se ouvir pelos campos, hortas e quintas de toda a freguesia. Aqui, a questão já é outra, bem mais pertinente.
        Terá de fazer-se ouvir, o galo, na freguesia, que o ministro Relvas quer varrer do mapa. Aqui, outro galo canta. Canta de noite e de dia. Sempre.
        Pelo que a maneira de o fazer calar, não será fazer do mesmo a “consoada” da véspera da noite de Natal, mas fazer com que cante no poleiro, e só no poleiro da freguesia, e de pescoço bem levantado, para ser ouvido em TODA a freguesia.
 Alegre, todas as manhãs, avisando cada freguês que são horas de levantar e ir para a terra, lavrar e tratar dos animais. Lavrar e tratar da freguesia que tem dono.
        “Pela noite de Natal”…, o pensamento foi ao encontro do Presépio e da Freguesia. O Presépio tem futuro, enquanto houver crentes que livremente o fazem e alindam; a Freguesia obrigatoriamente terá de ter futuro pelas mãos dos fregueses que a justificam e do governo que suportam.
        No percurso, o CD NATAL rodou algumas três vezes. Num percurso amaciado, com música macia e suave, que distrai e ajuda o pensamento. Numa noite estrelada, como não já via há muito. Boas Festas.
        altodoscedros.blogspot.com
            escrito na ortografia antiga
       
       




       

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

CD NATAL, agora editado

O Grupo Coral das Lajes percorreu quase toda a música tradicional açoriana, penetrou na música religiosa e sacra e nos últimos tempos abordou a música religiosa popular: do Espírito Santo e do Natal. O círculo musical ficou assim completo. Trilhado pela primeira vez, um pouco pela rama, entenda-se, pois ainda há muito por trilhar e fazer.
Deste último, de que hoje nos ocupamos, digo que se trata de uma pequena colecção de cânticos que fizeram parte das Cantatas de Natal dos anos anteriores.
 De todos eles, e são muitos, escolhemos 10 temas.
Numa abordagem simples, começaria por destacar o contributo do Prof. Manuel Francisco Costa que interpreta, como solista, três temas.
      - Noite de paz, do compositor Carlos Adolfo Adam, Natal dos simples de Zeca Afonso, e Natal… na província neva; este último com música do picoense Fernando Machado Soares, ilustre magistrado, sobejamente conhecido e apreciado pelas suas interpretações das canções de Coimbra, e letra de Fernando Pessoa.
         
         - Natal de Elvas, na voz solista de Lurdes Melo, – um bela canção popular, com letra e música da nosso Alentejo rural, superiormente harmonizada por Mário Sampayo Ribeiro;

Fazem parte da colecção, ainda:
- Partiram os três reis magos, uma melodia popular dos Açores relacionada com os Reis Magos;
- Canção pastoril – no duo Hélder Fernandes e Francisco José Soares - um tema popular açoriano, lembrando a gruta de abrigo de pastores, do interior da ilha, assemelhando-a à gruta dos pastores de Belém.
- Nina-nanatambém popular açoriano do nosso berço de criança, aqui feito berço de Belém.
- Noite Feliz, tradicionalmente conhecido, talvez o cântico mais conhecido em todo o mundo;
- Ave Maria – tema clássico de sabor palestriniano do compositor alemão F. Xaver Witt que viveu entre 1834 e 1888.
E, finalmente:
- Em Belém, tradicional inglês, numa adaptação dos franciscanos de Gondomar. “Natal, Natal, gloria a Deus no céu, Paz entre os homens, vitória de Deus”.

O nosso comentário final:
O Natal é o tempo da música por excelência. Não há Natal sem música. Os anjos foram os primeiros a cantar Glória a Deus nas Alturas. Desde então nunca mais se calaram as vozes. Aqui estão as nossas, desta Ilha. Uma afirmação cultural do tempo em que vivemos.
O Grupo Coral já vai em idade avançada. Ao longo de toda ela e nas gravações que já fez – e foram algumas – todas foram feitas pelo técnico da RDP – Açores, senhor Raul Resendes.
A RTP – Açores, mais uma vez, veio até nós fazer o programa ATLÂNTIDA, levando consigo as gravações deste CD. Será mais um documento para recordar. Muito agradecemos essa disponibilidade.
E muito agradecemos à Direcção Regional da Cultura/ Presidência do Governo, e à Câmara Municipal das Lajes todo o apoio prometido.
Louvamos todos os cantores que participaram. Louvamos os tocadores, os melhores que temos na ilha, sem ofensa para ninguém.
 A semente está lançada. Se foi possível este percurso, que já é longo, outros também serão possíveis.
Com gosto, paciência e persistência, tudo é possível. Os caminhos estão sempre abertos para os que vem depois. São os votos que aqui deixamos expressos.
Continuação de Boas Festas e um Feliz Ano Novo.
Manuel Emílio Porto
altodoscedros.blogspot.com
        escrito na ortografia antiga

domingo, 18 de dezembro de 2011

Natal de tempos idos....

Já eram quatro horas da tarde. O sol declinava bem, estava bom tempo, o mar não se mexia e a maré estava quase toda descarnada. Um simples olhar pelas encostas da rocha da Terra Alta e do Baixio, antevia uma boa maré de lapas.
        Era 24 de Dezembro. A mulher tinha andado todo o dia a mexer em farinha para cozer uns pães de milho para a semana seguinte. Nada melhor do que tentar apanhar umas lapas para matar a fome, logo à noite, antes de deitar. Se assim pensou, melhor o fez.
        Antes passou pela adega da Ponta Gorda, levando consigo um pequeno saco e um faqueiro que lá tinha. Pôs-se a caminho pela costa abaixo e foi até ao “Pacinho”.
        A costa estava limpa de “escalhos” de baleia. Na semana anterior o mar bravo fez limpeza profunda e não havia notícias de se terem apanhado baleias.
        O tempo que gastou não foi muito. O suficiente para conseguir apanhar um bom prato de lapas. Elas estavam mesmo a “modos de semear”. Eram mansas e havia muitas.
        Contente e com o saco cheio, regressou a casa. Já era escuro, e a mulher andava preocupada com a demora.
        - Só agora? Não sabias que sou preocupada quando não vens com dia?
        - Sabia, sim. Mas, eu vi uma maré de lapas como já não vejo há muito tempo. E pensei cá comigo: e se fosse apanhar um prato de lapas para cearmos, não seria uma boa ideia? Se bem o pensei, assim o fiz. Aqui te trago para a nossa ceia de hoje.
        Os sinos da Igreja haviam tocado Trindades com repenico no fim, dando a entender que naquela noite era a noite de Natal. Maria tinha entendido esse sinal do sino e disse ao marido que não respondeu.
        Acenderam a candeia de azeite, sentaram-se à mesa. Sobre a mesa as lapas e o pão ainda morno, cozido durante aquela tarde.
        - Estas lapas consolam, disse o Manuel.
        - São bem saborosas, respondeu a Maria.
        - Mais saborosas do que o frango do ano passado, lembras-te? Retorquiu o Manuel.
        - Lembro, sim, também era véspera de Natal. Afinal, a véspera de Natal é igual a tantas outras. A nós, que ainda há poucos anos nos casámos, não chegou a dita de melhores dias. Temos que poupar…
        … E depois … tenho ali umas galinhas que andam a pôr, não queria matar nenhuma agora, sempre vão dando uns ovos que ultimamente nos têm valido.
        Na amassaria havia um jarro com vinho que havia trazido da adega. Beberam cada um seu copo de vinho. O Manuel ainda alimentou uma conversa sobre os dois bois que estavam na atafona. Por lá passou, deitou nas manjedouras uns pastos e voltou.
        Ainda leu o Seringador para o ano seguinte. Riram com as anedotas, o juízo do ano da Tia Brígida e outras histórias. Apagaram a candeia de azeite. A lua via-se pela janela e era ela que alumiava os contornos do quarto.
        Deitados, ainda conversaram um pouco. Só conseguiram pegar no sono pela madrugada. Na cama, olhando o tecto e vislumbrando alguma estrela da noite por entre um ou outro buraco do forro, os pensamentos andavam longe.
        Entretanto, o sino tocou por três vezes e a seguir repenicou. Maria, que tinha passado por uma sonolência, disse baixinho:
        - “Já estão a alevantar a Deus”!
        - Será que vai ser sempre assim? Disse o Manuel que também tinha ouvido o sino.
        - A Maria, sentindo qualquer coisa a mexer-se no ventre, exclamou: Se Deus nos der vida e saúde, havemos de ir todos os três, daqui a um ano, à Missa do Galo.
        - E uma consoada melhorada, te garanto eu.
        Decorria o ano de 1937.
       

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Angola 69/71 O regresso de há 40 anos Texto revisto, feito postal de Boas Festas

 Outubro de 1969
Caros “Crocodilos”
Os tempos, à data do embarque – 20 de Outubro de 69 – já eram muito conturbados, ameaçadores de futuros incertos, tempos propícios a fugas para outros países, na busca de uma vida estável que a Pátria não conseguia dar. Muitas deserções aconteceram. O país conheceu uma sangria acentuada. O ambiente da terra-mãe era de frustração. Apesar de tudo isso, e da proximidade do Natal, foram para a guerra.
        Por outro lado, é bom de ver, também era de esperança. Movimentos inconformados já se faziam sentir. A esperança minava as ruas das cidades e os pátios das universidades. A mesma esperança, feita companheira de viagem, embarcou no Niassa e não esqueceu o Natal. Foi na praça, em frente à casa do Comando, no centro da Vila, do Norte de Angola. O melhor Natal, segundo alguns.
        Os jovens de ontem e homens maduros de hoje – a idade não perdoa – tiveram a oportunidade de sentir e viver os movimentos da história recente. Foram protagonistas dos maus momentos, que geralmente antecedem os horizontes de luz e de esperança. Continuam protagonistas dos desejos ainda não consumados. Parece que a História é assim feita – de utopias e de frustrações.
Obedientes ao poder politico-castrense, sem nunca esquecer a retaguarda, coube-lhes percorrer Angola. Conformados, partilhando a mesma sorte, foram sabendo das notícias, foram sabendo e acompanhando o desenrolar dos governos de então.
 E foram confrontando, comparando, tentando encontrar uma explicação que só veio mais tarde, quando cada um, já se sentia aliviado do pesadelo dos anos vividos em terras africanas. Terras lindas, cativantes, mas que, muito dificilmente, poderiam continuar a ser nossas.
        Os anos que por lá passaram – hoje parece evidente – foram tempos de defesa da própria vida, e tempos de alimentar a confiança no futuro. O objectivo era o regresso.
 Raro o soldado que diariamente não punha uma cruzinha no dia do mês e ano, no calendário, pendurado na camarata, “bem ilustrado e de rosas colorido”, para dizer assim em tom de exclamação: “mais um dia para trás”, “menos um dia que falta”!
O companheiro das horas mortas – o gravador e leitor de cassetes – reproduzia músicas de Zeca Afonso, Adriano, Fanhais e outros. Música de vanguarda que alimentava a esperança.
“Pergunto ao vento que passa //Por notícias do meu país”.
“Há sempre alguém que resiste //Há sempre alguém que diz não”.
“Já lá vai Pedro Soldado //Num barco da nossa armada”.
“O soldadinho não volta //Do outro lado do mar”.
As cantigas matavam a saudade e davam ânimo. E muitas do gravador passaram para alguns, que não se escondiam para as cantar, dando origem ao conjunto “Os Crocodilos do Quango”, com direito a hino, o hino do conjunto, depois hino do Batalhão, cuja letra aqui se transcreve:
Sozinhos e desesperados
Mas sempre fiéis soldados
Não viram costas ao perigo;
Fazem frente ao inimigo
Nas horas tristes da vida
É Deus quem lhes dá guarida.
Esteja sol ou chuva
Nunca faltam ao dever;
Há momentos de amargura
Por causa da vida dura,
Nas horas tristes que há
É Deus quem os salvará.
Na mata o esforço é forte
Quantas vezes frente à morte
Nunca há uma certeza
É uma vida de tristeza
Nas horas tristes então
É Deus que lhes dá a mão.
Coro:
São crocodilos,
São do Quango
São de Portugal também;
É o Batalhão
Que é sempre então
“O mais alto e mais além”.
        Dezembro de 71
E o regresso chegou. Numa caravela de luxo – o Vera Cruz, a 7 de Dezembro, na véspera da Imaculada, Padroeira de Portugal.
 Nas Caldas da Rainha, a 5 de Novembro de 2011 – 40 anos depois, foi a comemoração dessa data. Um convívio, não de saudade, mas de emoção sadia, que brotou da mesma vivência e da mesma entreajuda. As dificuldades – quando sinceras e verdadeiramente sentidas – não esquecem.
Receberam parabéns os que lideraram o encontro. Libertos das altas patentes político-militares, das mitras de ontem e de hoje, e dos barretes recentemente restaurados, coube-lhes a iniciativa. Livremente assumida e concordante. Sem vigilâncias do santo ofício, nem patrulhamentos castrenses.
À mesa reunidos, com rancho melhorado, sem arroz “aos saltinhos”, os ânimos foram de alegria, por mais este encontro de sã camaradagem.
Um silêncio e uma oração para os que tombaram fizeram parte da ementa. E uma palavra solidária, para quantos, deste Batalhão e de todos os Batalhões, regressaram estropiados, e ainda hoje sofrem os efeitos da guerra.
        Angola já está muito longe. Mas é bom recordar, enquanto houver um sobrevivente. É uma herança sem herdeiros.
 No livro “Angola 69/71”, editado no tempo do regresso, o capelão de então escreveu: “O teu novo campo de batalha é bem mais difícil do que este que agora termina. Não cruzes os braços. Atira-te com valentia e vencerás. Portugal confia em ti e Deus nunca te desampara”.
O capelão, e todos os que tiveram no convívio das Caldas, são hoje cidadãos e cristãos de uma Pátria, cristianizada pelos antepassados. Os votos de então continuam válidos.
Há 42 anos foi o Natal da Guerra, logo após a chegada ao norte de Angola. O regresso foi hoje, já passou. Daqui a dias será o Natal na Família. Um Feliz Natal para todos e até qualquer dia.
 Caldas da Rainha, 5 de Novembro de 2011, no encontro dos homens do B. CAÇ. 2889 – 40 anos depois do regresso.
Manuel Emílio Porto

       
       
       
       
       

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A Igreja: um obstáculo para a fé? Por Anselmo Borges

O título em forma interrogativa desta crónica foi sugerido por uma afirmação cuja autoria não pertence a nenhum teólogo perigoso, mas ao próprio Papa Bento XVI, quando era simplesmente Joseph Ratzinger: "Hoje, a Igreja converteu-se para muitos no principal obstáculo para a fé." Afinal, apenas uma constatação. É verdade que, sem a Igreja, como se teria ouvido falar de Jesus e do Deus de Jesus? Mas, por outro lado, lá está o teólogo J. I. González-Faus a dizer que a Cúria é responsável por mais ateus do que Marx, Nietzsche e Freud juntos.
Já aqui apresentei as ideias fundamentais da mais recente obra de Hans Küng: Ist die Kirche noch zu retten? (A Igreja ainda tem salvação?). Retomo a questão, partindo de uma entrevista sua à SWR2, a propósito do livro.
A quem o acusa de ressentimento responde: "Não. Julgo que continuo a ser capaz de falar muito bem com o Papa pessoalmente. Continuamos a manter correspondência e ele sabe que a minha preocupação é simplesmente a Igreja, mas que tenho uma concepção diametralmente oposta à sua no que se refere ao caminho a seguir. Interessa-me ressaltar que não chegámos a esta situação através do Papa Ratzinger, mas como evolução a partir do século XI." Aliás, enviou o livro a todos os bispos alemães, e as reacções foram "cordiais", e também a Bento XVI, com "uma carta cortês", na qual expunha como a sua intenção é ajudar a Igreja. E Ratzinger, num "gesto positivo", fez-lhe chegar o seu agradecimento.
Como exemplo da crise que atravessa a Igreja apresenta o caso da sua própria comunidade na Suíça. Havia quatro padres, hoje não há nenhum. Há um diácono fantástico, mas ele não pode presidir à Eucaristia por não ter sido ordenado sacerdote, e não pode sê-lo, porque é casado. "É completamente absurdo. Temos de abordar uma série de pontos muito concretos: 1. o celibato tem de ser opcional; 2. as mulheres têm de ter acesso aos cargos eclesiais; 3. é preciso permitir que os divorciados participem na Eucaristia; 4. deve estabelecer-se comunidades eucarísticas entre as diferentes confissões cristãs, sem se ter de esperar outros 400 anos."
Quando se faz o diagnóstico, vai-se ter inevitavelmente à reforma gregoriana. "A doença é o sistema romano", cujo gérmen foi introduzido com a chamada reforma gregoriana de Gregório VII, no século XI. Foi aí que se introduziu o papismo, o absolutismo papal, segundo o qual uma só pessoa na Igreja tem a última palavra. Isso produziu a cisão da Igreja Oriental. Aí radica o predomínio do clero sobre os leigos e o celibato obrigatório. A Reforma não teve êxito. O Vaticano II tentou lutar contra a situação, mas, com os dois últimos Papas, entrámos no restauracionismo.

O sistema de domínio romano faz com que se publiquem permanentemente documentos, sem perguntar ao episcopado nem consultar ninguém. É como se a Cúria tivesse o monopólio da verdade da Igreja. E por que é que os bispos mantêm o silêncio? "Porque já foram seleccionados no contexto de compromissos prévios, porque na ordenação prestaram juramento ao Papa, porque não podem falar livremente."
Mas quem vai admitir hoje que "uma só pessoa reclame para si o poder legislativo, executivo e judicial sobre uma comunidade de mais de mil milhões de pessoas?" A palavra "hierarquia" (poder sagrado) não se encontra no Novo Testamento; o que aparece é "diaconia" (serviço). "Hoje reina uma estrutura medieval que, em princípio, só se encontra nos países árabes. Recorda-nos o comunismo: baseia-se no secretário de um partido único que decide tudo. O resto foi escolhido em função da sua lealdade à linha papal. O mesmo se passa com os bispos. Mas já nem na Arábia se aceita os autocratas."
E a terapia? Faz falta, em primeiro lugar, "voltar às origens". "É impensável que Jesus de Nazaré comparecesse numa cerimónia do Papa; ele não teria lugar. É simplesmente uma manifestação de poder pomposa e imperial, onde todos aplaudem e os senhores deste mundo participam para serem vistos e ganhar votos."
A Igreja tem de regressar ao Evangelho. "Reclamo uma Glasnost e uma Perestroika."
Diário de Notícias,  11-12-2011

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Não cortar a relva a eito...

É uma metáfora, sim. E fácil de entender. O ministro Relvas parece que quer cortar a relva deste jardim à beira mar plantado, toda por igual.
        A mancha relvada do Portugal interior está nas habitações dos súbditos que elegem os governos e que são a razão de ser de Portugal como nação. Cidades, Vilas e Aldeias, são os ninhos de todos nós.
        Importa, por isso, o máximo cuidado em não destruir a mais pequena parcela, por muito pequena que seja. Ela faz parte integrante do todo nacional.
        Quando se corta a relva de um jardim, ou se monda uma área do campo aberto, há sempre o cuidado de não ferir pequenos arbustos, pequenas árvores. São esses pequenos arbustos e essas pequenas árvores que dão beleza ao ambiente e às paisagens dos nossos campos.
        O leitor já percebeu que estou, de novo, a referir-me às nossas freguesias do campo. Por favor, deixem-nas estar como estão. Elas sempre se habituaram a viver isoladas, mas alegres.
E também, por isso, souberam criar formas de vencer o isolamento. Hoje, são exemplo, para os que foram para o poder e, por vezes, se esquecem da sua origem.
        Por isso, peço ao senhor ministro Relvas, que não corte a relva a eito. Faça-o com cuidado. Aqui não vale a poupança, que não tem razão de ser. Aqui, sim, vale a razão da proximidade.
        Todavia, senhor ministro Relvas, deixo-lhe uma margem para cortar a relva à vontade, caminho aberto para outras manchas populacionais – as cidades. E aí faça como entender, sobretudo quando se pode e deve invocar a poupança, já que a proximidade é por demais evidente.
        As cidades e vilas podem muito bem ver reduzidas as freguesias. A começar por Lisboa e a terminar na mais pequena vila do País.
        Aqui nos Açores, há três exemplos flagrantes: Horta, Angra e Ponta Delgada podem ser cidades de uma só freguesia, cada uma com a sua. Espero que as autoridades regionais tenham o bom senso de não cortar à toa, pensando pela sua cabeça e não pela cabeça do ministro Relvas.
        E, sobre o assunto das freguesias, basta por agora.
        altodoscedros.blogspot.com
            escrito na ortografia antiga

       

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Aqui mora gente!

Voltando ao assunto das freguesias – já não digo dos Concelhos, e muito menos das freguesias incluídas nas grandes cidades, esse será ou não também assunto, veremos, – temos de convir que as freguesias do campo são as guardas avançadas do nosso mundo nacional e regional. São elas que ocupam todo o território. Foram elas que se fizeram por si mesmas, sem ordenamento de ninguém. Desde o povoamento.
        Hoje dão-se conselhos, impõem-se condições, para a construção de uma ou outra habitação, como por exemplo o abastecimento de água e electricidade, terrenos movediços, etc.
Mas, continuam ainda os povos do interior a escolher o lugar para a sua residência. E vamos deixar que seja assim. Em nada contradiz o desenvolvimento da comunidade.
        Neste apontamento, quero deixar bem claro que não é a poupança das freguesias rurais que vai trazer mais valias à Nação. A poupança das freguesias é tão mínima que se torna ridículo apontar o seu despesismo para causa da falência do erário público.
 Toda a gente sabe que as nossas freguesias rurais vivem da carolice dos seus eleitos. O que recebem – se é que recebem – não dará para muita coisa, em comparação com o muito que dão gratuitamente para o bem da sua comunidade. Não lhe retirem essa vontade de contribuir e continuar a contribuir com o que podem e gostam. Aquilo é para o bem de todos, então vamos a isso!...
Esse gosto e essa vontade já vem de longa data. O isolamento foi a causa. Párocos e Professores contribuíram para quebrar essa barreira, transformando-a em virtude de bem-fazer. É importante que se mantenha. É um valor a preservar.
        Olho para várias freguesias rurais que melhor conheço e vejo trabalho feito, muito trabalho feito e bem feito. E mais: uma boa parte dele feito gratuitamente pelos povos.
        Esta imagem, vejo-a diariamente, e quero continuar a vê-la, repetida, sempre repetida. É a garantia de que nada foi mal conduzido. Antes pelo contrário. É a garantia da nossa continuidade, como povo, que sempre soube construir a sua identidade.
A Nação inteira precisa dos seus povos, aglomerados e agarrados aos lugares que fizeram para viver. Recordo com pena que o lugar das Faias e outros, nestas ilhas, tenham sido desabitados. Ali, morava gente.
 É preciso, ao contrário, continuar a dizer sempre: aqui mora gente.
escrito na ortografia antigas
altodoscedros.blogspot.com
       
       

sábado, 3 de dezembro de 2011

Os feriados que temos

São muitos? São Poucos?
        São os que os homens deste país foram consagrando ao longo dos tempos. Ninguém tem nada a ver com isso. São nossos e de mais ninguém.
Alguns, oriundos do poder religioso, foram tomados e reconhecidos pelo poder civil. Outros, criados por este, outros ainda permitidos aos povos das aldeias e das cidades. Todos eles são marcos da História. Lembram algo de importante, que não deverá ser esquecido. Abolir feriados pode ser caminho aberto para o esquecimento. E, como consequência, um pouco para a perda da nossa identidade cultural.
        Nunca, no passado, tivemos a sensação de que os feriados tenham contribuído para a nossa decadência, para menos produtividade e mais pobreza. Antes, foram sinais de desenvolvimento cultural.
 Apesar das nossas fraquezas humanas que nos levam, por vezes, à preguiça e ao bom descanso, a verdade é que nunca deixamos para amanhã o que devemos fazer hoje. Aconteceu e acontece, sim, com cada um de nós em particular. Mas colectivamente falando, sempre houve bom senso no aproveitamento do nosso tempo.
        Olhemos apenas para a nossa Região: temos os feriados nacionais e também temos os regionais. Os nossos – os regionais – são poucos e foram criados pelos povos cristãos destas ilhas.
        Referimo-nos, primeiramente, aos dias das festas do Espírito Santo, sobretudo segunda e terça-feira, que são dias destinados às festas maiores.
        Quanto ao primeiro – a segunda-feira – foi já tomado para feriado regional pelo novo poder autonómico. Não acreditamos que o mesmo poder tenha coragem de o abolir ou desfazer, em nome de alguma produtividade, ou de alguma qualquer razão oculta.
        Quanto ao segundo – a terça-feira – é, por tradição, feriado popular em algumas freguesias e vilas. E mesmo nestas não haverá coragem de alguma oposição. Temo somente, que alguns chefes de serviços imponham a presença dos trabalhadores, não lhes permitindo celebrar esse dia juntos dos seus, nas suas comunidades.
        E, finalmente, porque também se celebram as grandes festas do Santo Cristo, do Bom Jesus ou da Senhora da Serreta (e possivelmente outras) – além dos padroeiros espalhados por todas as ilhas – manda o bom senso político da governação, que se mantenha o hábito de ser feriado nesses dias. E que não se aumentem as burocracias para a justificação de alguma ausência ao serviço.
        Não temos feriados a mais. Mesmo naquelas ilhas onde há sempre festas ou touradas por toda parte. Mas, serão os responsáveis locais a decidir. Pensamos que cada ilha poderá continuar a usufruir dos costumes que sempre soube cultivar, sem prejuízo do seu desenvolvimento e actividade económica.
        São poucas as actividades que não poderão ter feriados. A pecuária que obriga todo o lavrador a alimentar e a ordenhar as vacas todos os dias, e por conseguinte as fábricas que são obrigadas a laborar o leite que recebem. As pescas que exigem o seu processamento nas respectivas fábricas conserveiras. As mercadorias que entram e saem nos portos e aeroportos. Os doentes nos hospitais que esperam pela saúde.
O feriado é para assinalar algo que foi importante na História. Os que temos não prejudicam em nada o nosso desenvolvimento.
        Mas, aguardemos pelo que parece estar para vir.
        altodoscedros.blogspot.com
                escrito na ortografia antiga
       

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Ridendo castigat mores...

“A coisa
Procurava identificar o ponto crítico de cada fenómeno”. (Marco Gomes, in A União de 22.11.11)

O ponto crítico de cada fenómeno será a coisa.
Ora bem. Poucos se preocupam com a definição de coisa. Coisa pode ser um pouco de tudo, geralmente no singular, bem definida, concreta: Aquela coisa, esta coisa, outra coisa. Ou no plural: aquelas coisas, estas coisas, outras coisas.
 O ponto crítico de um fenómeno depende da natureza do próprio fenómeno. Se for uma granada de mão, o ponto crítico será quando ela rebentar. E a explosão será a coisa.
Mas olhemos para a outra banda da coisa. Mudemos o termo coisa, que é feminino, para o masculino. Logo teremos o coiso. E aqui, o termo torna-se fosco, manhoso. O coiso já não é tão universal como a coisa. Não se diz este coiso, aquele coiso, outro coiso…Também não diz estes coisos, aqueles coisos, outros coisos. O coiso é quase um ente abstracto, embora a sua presença seja uma realidade insofismável.
Não é, pois, um ente mental. É real. E vive ao lado da coisa. E a sua função é provocá-la.
 Quando se provocam explodem. Está encontrado o ponto crítico, que se chama simplesmente A COISA.
Está assim feita a análise de uma afirmação que parecia complicadíssima de entender. Afinal, uma coisa tão simples.
E.Porto


quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Por enquanto...vamos esperar para ver

O meu conterrâneo, Professor Hélder Fernandes, lançou lamentações de indignação no jornal "O Dever" de 1 de Dezembro, acerca do que se tem dito sobre a possibilidade de algumas freguesias virem a ser extintas. Concretamente referia-se à Ribeirinha.
        Embora pressinta que nada de bom está para vir e que a indignação é sempre legítima, vou tentar tranquilizar aqueles que comungam das mesmas preocupações.
        Foi o poder regional que criou a nova freguesia. Foi a primeira. Já depois dela criou outras freguesias. O poder regional, pois, tem esse poder: de criar e extinguir freguesias.
        E dentro desse poder regional dei o meu contributo para a criação da freguesia da Ribeirinha. Nos arquivos do poder legislativo lá está a leitura do documento, feita antes de cada discussão. Ocupava o lado esquerdo do velho amigo Álvaro Monjardino. Tive no centro da discussão, e também votei a seu favor.
        Com estas recordações quero dizer, que também ficarei triste, se as previsões, provenientes de muitos lados, se vierem a concretizar. Não se estranha que venham das populações. Estranha-se, sim que venham de quem nada tem a ver com a organização administrativa da região. Tordesilhas já vai longe! (Para bom entendedor, meia palavra basta).
Por toda a parte vemos trabalho feito. Nos arruamentos, nos muros de vedação, nos caminhos novos que rasgou, no seu porto da Baixa, nas reparações governamentais e autárquicas, na sua nova Sede da Junta.
        Penso, todavia, que ainda não terá chegado o tempo para levantar grandes lamentos. Estamos ainda nas expectativas.
        Mas há pressupostos a ter em conta, e eles devem ser referidos. Se se quer reordenar o território em nome da poupança, teremos de ser frontais e dizer, preto no branco, poupar, sim, mas a começar por cima.
        Isso mesmo. O poder regional – Assembleia Regional e Governo Regional com todas as suas Secretarias – teriam de situar-se numa só ilha. Só com esta mudança muito dinheiro se pouparia. Além disso, hoje, com as comunicações electrónicas, tudo se resolve em minutos.
        E depois, sim, façam-se os respectivos estudos. A organização autárquica já vem de muitos anos, séculos. Foi sempre criada por causa das pessoas. Foram elas que fizeram os seus concelhos, as suas freguesias, vilas e cidades. Foram elas que se impuseram, escolhendo os lugares para viver. Foi o seu trabalho, o seu dinamismo. O património urbano da freguesia ou da vila, ao povo pertence. Desde o primeiro povoador.
        Não é alterando, nesta área, seja o que for que se vai levar à poupança, e à maior economia da Região. Pelo contrário. Quanto menos oportunidades se derem às pessoas, menos será possível o seu desenvolvimento. E este começa pela casa onde se habita.
        Nesta fase, temos de ter em conta o seguinte: será o poder regional a liderar todo o processo, se o mesmo vier a ser posto na mesa para discussão, (o que francamente, ainda não acredito). E não creio que os deputados da Região tenham coragem para falar em nome dos eleitores, aprovando leis contra os mesmos eleitores. E aqui, já não me refiro só ao povo da Ribeirinha, mas outros também. Um pormenor: será que nas próximas legislativas regionais, os partidos vão referendar nos seus manifestos eleitorais alguma alteração neste sentido?
        Por enquanto, estamos no guarda-vento da porta de entrada da grande catedral do poder. As portas ainda não se abriram. Apenas se ouvem passos perdidos e apressados nos corredores por detrás dos altares. Vamos esperar para ver e ouvir no desenrolar das cerimónias.
        Para o Professor Hélder Fernandes a minha sintonia total. “Vamos lutar, a esperança é a última coisa a morrer”.
        altodoscedros.blogspot.com
                escrito na ortografia antiga

       

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O Fado é do mundo

Sim, senhor! Passou de Portugal e dos portugueses para o mundo inteiro – toda a humanidade.
        Tal como ficamos contentes com a humanidade da nossa Montanha e de outras parcelas, também agora manifestamos o nosso contentamento. E desta vez, por uma razão especial – trata-se de um bem imaterial, que é uma cantiga, muito querida dos portugueses.
        O fado, como cantiga, está consagrado. Já estava consagrado. Pela voz de muitos homens e mulheres. Que ficaram para a história, e que, felizmente, hoje já tem lídimos representantes, seus seguidores. O futuro desta cantiga está assegurado.
        O fado, cantiga popular portuguesa, apresenta uma cor singular, muito de acordo com a história dos portugueses. Uma história feita de viagens longas, de ausências prolongadas, de encontros e confrontos dolorosos, de angústias e desilusões. Também de muitos amores e desamores, de afectos e desafectos. E de muitas tragédias. O fado lembra isso mesmo – a sina de um povo.
        É uma canção de intimidade. De saudade profunda. De alma cheia, de coração grande, como a saudade que “arrocha o coração”.
        O fado, como canção musical, é de uma estrutura simples. Geralmente feita de acordo com a medida da quadra popular. Quatro frases, uma ou outra repetida, e está feita a música.
        Faço estes apontamentos, pensando que a mesma estrutura também entrou na cantiga religiosa e sacra. Há exemplos já experimentados neste campo. Nem sempre bem conseguidos.
Claro que não estou a ver uma celebração religiosa feita com fados. Ninguém vai a uma igreja, à missa dominical, para ouvir fados. Estes têm lugar na sua casa própria.
        Outra coisa é ver a composição musical em forma de fado, na sua estrutura e na sua medida, destinada ao ambiente sacro. Temas, naturalmente, para ocasiões especiais, como entradas, ofertórios, meditação, acção de graças.
        Trago aqui, para exemplo feliz, o tema dedicado ao Bom Jesus, com letra de Albino Terra Garcia, e já muitas vezes executado nas festas de Agosto no seu Santuário desta Ilha.
D. Albino Cleto, Bispo de Coimbra que por lá passou, bastante satisfeito se sentia quando ouvia cantar aquele tema. Assim dizia: vai ao encontro da piedade popular. “Até parece que é cada um a dizer o que lhe vai na alma”. “Ó meu Senhor Bom Jesus // Sou peregrino do amor// Venho pedir uma graça // Para aliviar minha dor”.
        Estas palavras são a confirmação do que se diz do fado: uma canção que fala de dentro para fora. Uma canção com alma.
O mesmo se diz, pois, quando se entra no campo da fé, da fé de quem acredita, que canta o que sente no seu íntimo. É isso mesmo: é a alma que se manifesta através da poesia e da música popular.
Convém aqui recordar o que se diz da música em geral. A música não são apenas as notas, as pausas, os compassos, as modelações próximas ou arrojadas, a partitura. A música está acima disso tudo: a música é vida, é alma, é expressividade. A música há-de dar ao ouvinte a ideia de alguma coisa que vem de dentro para fora. E isso nota-se no rosto de quem toca um instrumento, ou de quem canta um tema qualquer. Basta reparar nos rostos dos executantes de uma orquestra, desde a batuta até aos grandes tambores.
Leio que em Lisboa já se fizeram liturgias com músicas de fado. Nunca ouvi. Não creio em colagens, pois, nesta área, são simplesmente desadequadas e impróprias. Creio, sim, em construções novas. Baseadas na forma popular. Da poesia e da música.
Agora, que o fado foi considerado património da humanidade, bem posso dizer, mais à vontade, que Montanha do Meu Destino, canção com letra de José Enes, é um autêntico fado dedicado à Montanha que nos viu nascer.
E mais não diria. Todavia, já que alguém levanta a hipótese de outros bens imateriais, como o Cante Alentejano, sou levado a exclamar: e a nossa Chamarrita do Pico?
É melhor dar o dito por não dito. Alguém, de imediato diria: antes o hino do senhôsantcrist!!!, ou, antes as vuelhas!!!
Ironias, à parte, deliciemo-nos com um bom fado. Cantado pela Amália.
escrito na ortografia antiga
altodoscedros.blogspot.com

       
       

       

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

No fim das colheitas...

"O milho das Almas”
"O milho da Conceição"
        O milho cultivava-se no mais pequeno pedaço de terra. Nas hortas ribeirinhas e na meia encosta de enxada e alvião na mão; nos terrenos lavradios com bois de lavrar; e também mais no alto, em roças de relva e giesta, já em Maio adiantado.
        Os milhos, colhidos, eram secos no forno. Poucos usavam as “burras de milho” ao ar livre. Depois de cada fornada – por vezes diariamente – as esteiras, feitas de junco das lagoas do mato, eram estendidas no chão da loja ou no quarto maior da casa. Sobre elas se colocavam as maçarocas tiradas do forno, prontas para serem debulhadas.
 Sentados sobre a esteira, de pernas estendidas que apoiavam uma laje de pedra inclinada, a mão direita dava inicio à debulha, friccionando a maçaroca na pedra, caindo os grãos sobre a esteira. Nem todos tinham a máquina de debulha, um luxo só para os mais abastados. Dos que haviam regressado da rica América.
As secas dos milhos eram deveras trabalhosas e extenuantes. Na rua, bem perto da cozinha, era importante ter a lenha necessária. Gravetos para o acender do lume e achas para depois aquecer o forno. Importante ainda ter a lenha abrigada, por causa da chuva. Lenha alagada não arde, evidência pura que as mulheres da cozinha bem sabiam.
Feitas as temporadas das “secas dos milhos” – talvez umas três semanas de debulhas diárias, por vezes, mais – as caixas de pinho quase enchiam, consoante as produções relativas ao ano em curso. Havia anos bons e anos maus. Tudo se avaliava no fim das colheitas. Tudo se apaziguava e amansava nos dias seguintes, até às próximas sementeiras. O pão de milho era o mais importante numa casa. Para este ano vamos ter, para o ano que vem, sabe Deus!
Mas as pessoas também acreditavam que não estavam sós neste mundo. Eram agradecidos e sabiam que precisavam das bênçãos de Deus para as boas colheitas. Por isso, não se esqueciam dos parentes falecidos que lhe tinham deixado as propriedades, nem da protecção dos santos para a natureza que fazia germinar a semente.
Para os parentes falecidos, ou para as almas, como se dizia, colocavam pares de maçarocas sobre o adro da Igreja, no dia de Todos os Santos. Era o “milho das almas”.
 Uma imagem que ainda recordo – toda a parede do adro cheia de maçarocas, de uma ponta a outra. No mesmo dia, depois da missa, eram calculadas em alqueires, e depois arrematadas.
Para a protecção dos Santos, era a festa da Senhora da Conceição, a contemplada. Nas vésperas da festa, todas as casas eram visitadas, pedindo-se a cada família uma quantia, conforme as suas posses – um “razoila de meia quarta, uma quarta, por vezes um alqueire. Todo esse milho, em grão e já seco, era colocado sobre o sobrado, no canto da capela-mor. No dia da festa era arrematado. Era o “milho da Conceição”. Recordo anos de mais de um moio de milho.
O milho das almas e o milho da Conceição são dois momentos de uma tradição que praticamente desapareceu. Hoje, já quase nada de semelhante aparece. Os tempos já são outros. Já pouco milho para grão se semeia. Só alguns, por gosto e tradição.
Mas, tendo em atenção as crises que andam entre nós, não sabemos se algo voltará a acontecer. Os terrenos são os mesmos. Ainda existem. As pessoas e as mentalidades é que são outras. Será que o futuro aponta de novo para o campo?
A festa das Almas já passou e a da Senhora da Conceição está quase a chegar. Aqui deixo, neste apontamento, uma lembrança dos tempos que já foram. Para os velhos recordarem. E os novos, de alguma forma, também lerem, esperando que não tenham de passar por costumes desses outros tempos.
Era assim, na Ribeirinha deste Concelho.
escrito na ortografia antiga
altodoscedros.blogspot.com