segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Angola 69/71 - Quarenta anos depois

(Encontro dos homens que foram militares da Companhia de Comando e Serviços do Batalhão de Caçadores 2889). Caldas da Rainha, Salão Milénio, 5 de Novembro de 2011 pelas 12 horas.


Caríssimos “crocodilos”

 Outubro de 1969
 Os tempos, à data do embarque, já eram muito conturbados, ameaçadores de futuros incertos, tempos propícios a fugas para outros países, na busca de uma vida estável que a Pátria não conseguia dar. Muitas deserções aconteceram, o país conheceu uma sangria acentuada, da qual ainda hoje se ressente. A juventude é a maior força de uma nação, um princípio válido para todo e qualquer sistema político. Assim se dizia então, hoje diz-se e amanhã também se dirá.
        Mas, se por um lado o ambiente português era de frustração, de “à rasca”, como hoje se diria, também já era de esperança. Os governos pareciam indecisos. E alguns movimentos inconformados, já se faziam sentir por todo o país. A esperança já minava os corredores dos poderes e das instituições públicas e privadas.
       
Tiveram estes homens de hoje, aqui presentes, na Pátria que os viu nascer, a oportunidade de sentir e viver os movimentos da história recente. Foram protagonistas dos maus momentos, que geralmente antecedem os horizontes de luz e de esperança. São ainda protagonistas dos desejos ainda não consumados. Parece que a nossa História é assim feita – de utopias e de frustrações.
Houve um antes da primeira República. Houve um antes do 28 de Maio e por fim, houve um “antes do 25 de Abril”, que foi feito e construído na base dos que não fugiram nem viraram a cara. Todos foram desse tempo. Fomos assim protagonistas de utopias e, pelo que hoje vemos, também somos de fracassos.
Obedientes ao poder de então, sem nunca esquecer a retaguarda, coube-nos percorrer Angola. Conformados, de forma íntima, na privacidade, partilhando com os colegas da mesma sorte, foram sabendo das notícias, foram sabendo e acompanhando o desenrolar das políticas do poder instalado.
 E foram confrontando, comparando, tentando encontrar uma explicação que só veio mais tarde, quando cada um, já se sentia aliviado do pesadelo dos anos vividos em terras africanas. Terras lindas, cativantes, mas que, muito dificilmente, poderiam continuar a ser nossas.
        Os anos que por lá passaram – hoje parece evidente – foram tempo de defesa da própria vida, e tempo de alimentar a confiança no futuro. O objectivo, na alma de cada um, era o regresso.
Regressar, constituir família, procurar uma profissão, e ajudar a construir a sua verdadeira Pátria. A sua preocupação dominante foi planear e sonhar o futuro que depois mais tarde encontrou.
 Era raro o soldado que diariamente não punha uma cruzinha no dia do mês e ano, no calendário, pendurado na camarata, “bem ilustrado e de rosas colorido”, para dizer assim em tom de exclamação: “menos um dia que falta”.
 Este pormenor foi revelador do que, depressa, me apercebi, quando lá cheguei, alguns dias mais tarde. O regresso era a obsessão do dia a dia.
Um companheiro das horas mortas, sempre levado a tiracolo – confesso que tive um deles – foi o gravador e leitor de cassetes com músicas de Zeca Afonso, Adriano e outros. Muita música de vanguarda se consumiu naquelas terras. Foi o bálsamo que suavizava, dava ânimo e coragem para o dia seguinte. Depois de cada audição, a alma ficava mais cheia, mais corajosa e carregada de esperança.

“Pergunto ao vento que passa
Por notícias do meu país”.

“Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não”.

                “Já lá vai Pedro Soldado
                Num barco da nossa armada”.


“O soldadinho não volta
Do outro lado do mar”.

Para descontrair, que também foi importante, lá ia uma cantiga popular:
       
        “Eu fui ao Pico piquei-me
        Piquei-me lá num silvado;
        Nunca mais eu vou ao Pico
        Sem o Pico ser mondado”.

Estas cantigas penetravam até aos ossos. Matavam a saudade e davam ânimo. E muitas do gravador passaram para alguns, que as cantávamos também.
Acompanhadas pela carolice do António Baptista Martins, no acordeão e do Manuel Pinheiro de Oliveira, no violão, e de mais uns quantos, cujos nomes agora não recordo. Era o conjunto “Os Crocodilos do Quango”. Que até teve direito a um hino, o hino do conjunto. Não recordo o autor da letra, mas revelava a fé que acompanhava a juventude de então:
Sozinhos e desesperados
Mas sempre fiéis soldados
Não viram costas ao perigo;
Fazem frente ao inimigo
Nas horas tristes da vida
É Deus quem lhes dá guarida.

Esteja sol ou chuva
Nunca faltam ao dever;
Há momentos de amargura
Por causa da vida dura,
Nas horas tristes que há
É Deus quem os salvará.

Na mata o esforço é forte
Quantas vezes frente à morte
Nunca há uma certeza
É uma vida de tristeza
Nas horas tristes então ´
É Deus que lhes dá a mão.

Coro:
São crocodilos,
São do Quango
São de Portugal também;
É o Batalhão
Que é sempre então
O MAIS ALTO E MAIS ALÉM.

               
        Assim se consolidou um objectivo comum – o regresso. O regresso que agora justifica este encontro comemorativo de profunda emoção humana. Não de saudade, mas de emoção sadia, que brota da mesma vivência e da mesma entreajuda. As dificuldades – quando sinceras e verdadeiramente sentidas – não esquecem.
        Caberia aqui recordar uma ou outra história. Mas ficam para as conversas durante a tarde. Todos terão algo a dizer ou a recordar um ao outro.
Da minha parte trago comigo duas recordações. Uma nada agradável, a outra ficou-se pela curiosidade. Começo pela primeira: Foi um regresso de Massau para Negage, via Destacamento do Cuango e Foz do Massanza, em avião Dornier que fazia o reabastecimento de víveres e correio. O piloto, Alferes Boavista, lembrou-se de atirar tiros para o rio e dar voltas sobre si mesmo. Amarrado a qualquer coisa no lugar das batatas e das cebolas, dando voltas em parafuso, já não via nada de nada. Tudo me parecia escuro. Quando aterrei no Destacamento do Quango, logo caí quase inconsciente. Soube depois, dizia o piloto aviador, que os tiros foram para turras que estavam no rio. Nunca ninguém soube dessa certeza.
Um outro episódio foi, quando, numa passagem pela C.Caç. 2605, também em Massau, o Capitão me ter convidado para um passeio ao lado de lá da fronteira. Aceitei e fomos em barco pneumático. Fomos direitos a uma pequena povoação. Tivemos pouco tempo, falavam francês, e olhavam-nos de riso amarelo; mas deu para ver uma mulher a fritar minhocas, muito parecidas com as minhocas das couves. Disserem-me que eram para comer. Arrepiei-me com aquela explicação, tive receio daqueles olhares estranhos e disse ao Capitão: vamos já para Massau. Voltamos em paz e não vimos crocodilos.
        E, voltando de novo, à solidariedade vivida durante dois anos, aqui encontramos a razão de ser destas comemorações. Que ninguém se escandalize por isso. Só os que passaram por África, na guerra é que sabem. Mais ninguém.

Novembro de 2011

Resta-me elogiar quem liderou este encontro. Quem pesquisou, quem procurou saber o paradeiro de quantos hoje aqui vieram. Dizem-me que no centro das diligências feitas estão o António Mendes e o Manuel Oliveira. Parabéns a eles. Do primeiro recordo, quando, conduzindo o Unimog, eu ia ao lado, à frente. Do segundo, quando pegava na viola, e dávamos largas às cantigas.
Finalmente, uma saudade para os que tombaram, e uma palavra solidária, para quantos, deste Batalhão e de todos os Batalhões, regressaram estropiados, e ainda hoje sofrem os efeitos da guerra.
        Não vale hoje, aqui, avaliar o que aconteceu a cada um dos vivos, durante estes 40 anos passados. Pena, naturalmente, para os que já faleceram. Coragem e força, para os doentes. Coragem e força para cuidar da saúde. Parabéns pelos sucessos que também os houve.
        Os tempos de Angola já estão lá muito longe. É importante recordar enquanto houver um sobrevivente. Não deixamos esta herança a ninguém. É nossa e vai connosco. Por isso, esperamos que ela se repita por muitos anos ainda.
 No livrinho “Angola 69/71”, que cada um trouxe consigo, o último texto foi escrito pelo capelão de então. Cito o derradeiro parágrafo: “O teu novo campo de batalha é bem mais difícil do que este que agora termina. Não cruzes os braços. Atira-te com valentia e vencerás. Portugal confia em ti e Deus nunca te desampara”.
Convém dizer que o Capelão de então era eu. Se hoje não posso sê-lo, por novo estatuto definido, sou-o pela natureza da mesma fé. Somos todos cidadãos de uma Pátria, que foi cristianizada pelos nossos antepassados. Independentemente das opções confessionais de cada um, a solidariedade é universal.
Por isso peço um minuto de silêncio e uma oração pela memória dos que por lá ficaram e pelos que já faleceram. (Pausa)
 Os votos que então expressei no livrinho citado foram votos sinceros. Felicidades para todos. Foi um prazer este reencontro. Até qualquer dia.
Manuel Emílio Porto
altodoscedros.blogspot.com
escrito na ortografia antiga