Outubro de 1969
Caros “Crocodilos”
Os tempos, à data do embarque – 20 de Outubro de 69 – já eram muito conturbados, ameaçadores de futuros incertos, tempos propícios a fugas para outros países, na busca de uma vida estável que a Pátria não conseguia dar. Muitas deserções aconteceram. O país conheceu uma sangria acentuada. O ambiente da terra-mãe era de frustração. Apesar de tudo isso, e da proximidade do Natal, foram para a guerra.
Por outro lado, é bom de ver, também era de esperança. Movimentos inconformados já se faziam sentir. A esperança minava as ruas das cidades e os pátios das universidades. A mesma esperança, feita companheira de viagem, embarcou no Niassa e não esqueceu o Natal. Foi na praça, em frente à casa do Comando, no centro da Vila, do Norte de Angola. O melhor Natal, segundo alguns.
Os jovens de ontem e homens maduros de hoje – a idade não perdoa – tiveram a oportunidade de sentir e viver os movimentos da história recente. Foram protagonistas dos maus momentos, que geralmente antecedem os horizontes de luz e de esperança. Continuam protagonistas dos desejos ainda não consumados. Parece que a História é assim feita – de utopias e de frustrações.
Obedientes ao poder politico-castrense, sem nunca esquecer a retaguarda, coube-lhes percorrer Angola. Conformados, partilhando a mesma sorte, foram sabendo das notícias, foram sabendo e acompanhando o desenrolar dos governos de então.
E foram confrontando, comparando, tentando encontrar uma explicação que só veio mais tarde, quando cada um, já se sentia aliviado do pesadelo dos anos vividos em terras africanas. Terras lindas, cativantes, mas que, muito dificilmente, poderiam continuar a ser nossas.
Os anos que por lá passaram – hoje parece evidente – foram tempos de defesa da própria vida, e tempos de alimentar a confiança no futuro. O objectivo era o regresso.
Raro o soldado que diariamente não punha uma cruzinha no dia do mês e ano, no calendário, pendurado na camarata, “bem ilustrado e de rosas colorido”, para dizer assim em tom de exclamação: “mais um dia para trás”, “menos um dia que falta”!
O companheiro das horas mortas – o gravador e leitor de cassetes – reproduzia músicas de Zeca Afonso, Adriano, Fanhais e outros. Música de vanguarda que alimentava a esperança.
“Pergunto ao vento que passa //Por notícias do meu país”.
“Há sempre alguém que resiste //Há sempre alguém que diz não”.
“Já lá vai Pedro Soldado //Num barco da nossa armada”.
“O soldadinho não volta //Do outro lado do mar”.
As cantigas matavam a saudade e davam ânimo. E muitas do gravador passaram para alguns, que não se escondiam para as cantar, dando origem ao conjunto “Os Crocodilos do Quango”, com direito a hino, o hino do conjunto, depois hino do Batalhão, cuja letra aqui se transcreve:
Sozinhos e desesperados
Mas sempre fiéis soldados
Não viram costas ao perigo;
Fazem frente ao inimigo
Nas horas tristes da vida
É Deus quem lhes dá guarida.
Esteja sol ou chuva
Nunca faltam ao dever;
Há momentos de amargura
Por causa da vida dura,
Nas horas tristes que há
É Deus quem os salvará.
Na mata o esforço é forte
Quantas vezes frente à morte
Nunca há uma certeza
É uma vida de tristeza
Nas horas tristes então
É Deus que lhes dá a mão.
Coro:
São crocodilos,
São do Quango
São de Portugal também;
É o Batalhão
Que é sempre então
“O mais alto e mais além”.
Dezembro de 71
E o regresso chegou. Numa caravela de luxo – o Vera Cruz, a 7 de Dezembro, na véspera da Imaculada, Padroeira de Portugal.
Nas Caldas da Rainha, a 5 de Novembro de 2011 – 40 anos depois, foi a comemoração dessa data. Um convívio, não de saudade, mas de emoção sadia, que brotou da mesma vivência e da mesma entreajuda. As dificuldades – quando sinceras e verdadeiramente sentidas – não esquecem.
Receberam parabéns os que lideraram o encontro. Libertos das altas patentes político-militares, das mitras de ontem e de hoje, e dos barretes recentemente restaurados, coube-lhes a iniciativa. Livremente assumida e concordante. Sem vigilâncias do santo ofício, nem patrulhamentos castrenses.
À mesa reunidos, com rancho melhorado, sem arroz “aos saltinhos”, os ânimos foram de alegria, por mais este encontro de sã camaradagem.
Um silêncio e uma oração para os que tombaram fizeram parte da ementa. E uma palavra solidária, para quantos, deste Batalhão e de todos os Batalhões, regressaram estropiados, e ainda hoje sofrem os efeitos da guerra.
Angola já está muito longe. Mas é bom recordar, enquanto houver um sobrevivente. É uma herança sem herdeiros.
No livro “Angola 69/71”, editado no tempo do regresso, o capelão de então escreveu: “O teu novo campo de batalha é bem mais difícil do que este que agora termina. Não cruzes os braços. Atira-te com valentia e vencerás. Portugal confia em ti e Deus nunca te desampara”.
O capelão, e todos os que tiveram no convívio das Caldas, são hoje cidadãos e cristãos de uma Pátria, cristianizada pelos antepassados. Os votos de então continuam válidos.
Há 42 anos foi o Natal da Guerra, logo após a chegada ao norte de Angola. O regresso foi hoje, já passou. Daqui a dias será o Natal na Família. Um Feliz Natal para todos e até qualquer dia.
Caldas da Rainha, 5 de Novembro de 2011, no encontro dos homens do B. CAÇ. 2889 – 40 anos depois do regresso.
Manuel Emílio Porto