Já eram quatro horas da tarde. O sol declinava bem, estava bom tempo, o mar não se mexia e a maré estava quase toda descarnada. Um simples olhar pelas encostas da rocha da Terra Alta e do Baixio, antevia uma boa maré de lapas.
Era 24 de Dezembro. A mulher tinha andado todo o dia a mexer em farinha para cozer uns pães de milho para a semana seguinte. Nada melhor do que tentar apanhar umas lapas para matar a fome, logo à noite, antes de deitar. Se assim pensou, melhor o fez.
Antes passou pela adega da Ponta Gorda, levando consigo um pequeno saco e um faqueiro que lá tinha. Pôs-se a caminho pela costa abaixo e foi até ao “Pacinho”.
A costa estava limpa de “escalhos” de baleia. Na semana anterior o mar bravo fez limpeza profunda e não havia notícias de se terem apanhado baleias.
O tempo que gastou não foi muito. O suficiente para conseguir apanhar um bom prato de lapas. Elas estavam mesmo a “modos de semear”. Eram mansas e havia muitas.
Contente e com o saco cheio, regressou a casa. Já era escuro, e a mulher andava preocupada com a demora.
- Só agora? Não sabias que sou preocupada quando não vens com dia?
- Sabia, sim. Mas, eu vi uma maré de lapas como já não vejo há muito tempo. E pensei cá comigo: e se fosse apanhar um prato de lapas para cearmos, não seria uma boa ideia? Se bem o pensei, assim o fiz. Aqui te trago para a nossa ceia de hoje.
Os sinos da Igreja haviam tocado Trindades com repenico no fim, dando a entender que naquela noite era a noite de Natal. Maria tinha entendido esse sinal do sino e disse ao marido que não respondeu.
Acenderam a candeia de azeite, sentaram-se à mesa. Sobre a mesa as lapas e o pão ainda morno, cozido durante aquela tarde.
- Estas lapas consolam, disse o Manuel.
- São bem saborosas, respondeu a Maria.
- Mais saborosas do que o frango do ano passado, lembras-te? Retorquiu o Manuel.
- Lembro, sim, também era véspera de Natal. Afinal, a véspera de Natal é igual a tantas outras. A nós, que ainda há poucos anos nos casámos, não chegou a dita de melhores dias. Temos que poupar…
… E depois … tenho ali umas galinhas que andam a pôr, não queria matar nenhuma agora, sempre vão dando uns ovos que ultimamente nos têm valido.
Na amassaria havia um jarro com vinho que havia trazido da adega. Beberam cada um seu copo de vinho. O Manuel ainda alimentou uma conversa sobre os dois bois que estavam na atafona. Por lá passou, deitou nas manjedouras uns pastos e voltou.
Ainda leu o Seringador para o ano seguinte. Riram com as anedotas, o juízo do ano da Tia Brígida e outras histórias. Apagaram a candeia de azeite. A lua via-se pela janela e era ela que alumiava os contornos do quarto.
Deitados, ainda conversaram um pouco. Só conseguiram pegar no sono pela madrugada. Na cama, olhando o tecto e vislumbrando alguma estrela da noite por entre um ou outro buraco do forro, os pensamentos andavam longe.
Entretanto, o sino tocou por três vezes e a seguir repenicou. Maria, que tinha passado por uma sonolência, disse baixinho:
- “Já estão a alevantar a Deus”!
- Será que vai ser sempre assim? Disse o Manuel que também tinha ouvido o sino.
- A Maria, sentindo qualquer coisa a mexer-se no ventre, exclamou: Se Deus nos der vida e saúde, havemos de ir todos os três, daqui a um ano, à Missa do Galo.
- E uma consoada melhorada, te garanto eu.
Decorria o ano de 1937.