O programa “Atlântida” do Natal de 2011 abraçou toda a gente. Dos Açores, do Canadá e das Américas. Foi até aos lugares onde há gente das ilhas. Cumpriu a sua missão de serviço público. Esperemos que o senhor ministro Relvas não corte a relva toda, na RTP Açores, como parece querer cortar.
Se assim acontecer, desculpem a ironia, pode bem dar-se o caso de, ter sido a última viagem do programa, passar a haver menos serviço público, e o senhor ministro ficar a ser conhecido como o ministro corta-relvas. Para depois, se poder exclamar, como o poeta: “já não vem ninguém”, e o povo completar: o ministro cortou tudo. O que seria desolador para uma autonomia que ainda há pouco nasceu. Não seria aborto, já de si mau; seria infanticídio, que é pior.
Feita esta observação crítica (em nada partidária, bem entendido), e relevando a importância da ligação fraterna com toda a comunidade açoriana, espalhada pelos quatro cantos do mundo, permitam-me que releve um aspecto que terá ficado na obscuridade, após a exibição pública do programa. Foi um programa cultural, mas também de sabor pastoral.
Por muito que se queira dizer, separando conceitos, afastando sensibilidades, estão intimamente ligados entre si. Cultural e pastoral, dentro da Igreja Católica, são adjectivos que andam sempre de braço dado.
Todos os componentes que intervieram na parte musical deram mostras da sua capacidade criativa. Do que são capazes de fazer. E o mesmo sucedeu com todos os outros participantes, mormente pelo seu criador/apresentador, sobejamente conhecido, e por outros que deram o seu testemunho qualificado.
Na execução dos números musicais, dentro das suas limitações - que as tem - o Coro trouxe ao de cima os valores do natal cristão, nas suas vertentes culturais e religiosas.
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Passadas algumas horas, e sentado a escrever duas linhas a propósito, lembrei os serões natalícios de outrora, no grande corredor dos teólogos de Angra, enfeitado de pinheiros, criptomérias e outras verduras, com luzes e luzinhas embrulhadas em papel colorido, ouvindo suavemente os alunos teólogos, (a capela da instituição) acompanhados ao piano pelo Artur Goulart, sob a direcção do Armindo da Luz, executando o vilancico “Nasceu, nasceu, pastores…”, o “Noite Feliz”, ou ainda o António Cordeiro, o Silvino Amaral e o José da Conceição, a executar uma bilbaína que começava assim: De colores se vesten los campos en la primavera… Mais as poesias, mais os pequenos trechos lidos, mais algum pequeno extracto de comédia ou de opereta. Costumes internos de todos os anos, de todos os natais, de todos os cursos, sempre com novos protagonistas, de todas as consoadas e de todos os presépios, armados nas redondezas da porta de entrada, com acesso à sala de música - sala de aprender e de ensaiar. Sala de ouvir atentamente o mestre, guia seguro de vozes e emoções. Este foi um programa que nos transportou a todos estes lugares e tempos recuados, menos recuados e mais recentes. Levou-nos:
- Aos primeiros passos, na seara, às primícias musicais, carinhosamente amparadas pela já idosa D. Alice Borba, organista competente, nas novenas da Conceição e do Natal, na Angra de 1963, sem esquecer a primeira visita pastoral. Uma visita tão atribulada que deixou sua reverendíssima desorientado, borrando-se todo de tinta, quando tombava o seu juízo negativo no livro de tombo da paróquia; na falta de acólitos qualificados, desolado, dizia: quem pega aqui nas pontas da capa? Uma tragédia!..
- Aos teatros e aos ranchos de Natal, do Galeão dos “amaros”, "azevedos", “correias” e “tarimbas”, sob os olhares "atentos e inquisitórios" do Monsenhor e do Reitor; ao primeiro rancho de Natal que o condutor José Devesas acidentou na valeta da estrada perto do cemitério da Piedade por altas horas da noite, e que o companheiro de oficio, Miguel, dormindo na Ribeirinha e sabendo do acidente, socorreu prontamente; sem esquecer, de novo, a segunda visita pastoral, pelo porto da Prainha, em dia de muito inverno, na lancha Espalamaca, e.... outra tragédia: sem vinho nas galhetas! - o começo, da firme vontade, de não voltar a receber terceira visita pastoral;
- À tropa da guerra e aos natais de Sanza Pombo; das viagens à fronteira, ao Quango, e ao Sul de Moçamedes e às bebedeiras de um coronel amargurado com a esposa, ausente em Lisboa, sofrendo de doença oncológica, com morte anunciada; ainda a Cabinda e ao Maiombe, com mais um Natal, onde se encontraram os guerrelheiros inimigos para os primeiros passos da paz há muito desejada;
- À terra-mãe, ilha negra, terra de baleeiros e pastores do santo abade Antão; terra do salvamento do Órgão de Tubos com o Padre Trigueiro; terra dos xilofones da Escola do Centeno, do Manuel Xavier, do Costa e da Regina do "Grupo de Cantares"; terra que foi do Padre Rogério e da fundação do Grupo Coral que sempre incentivou enquanto viveu junto dele; terra que quase viu destruido o trabalho que deixou, por um estranho clérigo vindo de terras distantes; terra das novenas do Bom Jesus.
- Aos natais de hoje e de sempre. Sempre com música. Porque o Natal tem sempre música, em qualquer lugar, com qualquer instrumento. Até com um simples assobio. No meio das maiores tormentas, tempestades, conflitos e guerras.
No programa televisivo não houve, nem comédia, nem tragédia. Houve a representação, alusiva ao presépio, pelas crianças da freguesia, houve a poesia de Dias de Melo, dita por quem sabe, houve os testemunhos dos usos e costumes natalícios, e houve a música coral.
E também a presença do jovem pároco e coralista João Ponte, que, apesar dos compromissos já assumidos, soube conciliar, dando ali o seu testemunho, sem complexos nem tibiezas; um luzeiro, no meio do deserto negro da ilha; testemunho que mais reforçou a lembrança de outros tempos, e o contraste com os tempos presentes.
O programa “Atlântida” do Natal de 2011 deu-nos a lembrança, fugaz embora, da década de 50/60 do Seminário de Angra. Por isso, e sobretudo por isso, o programa, gravado na Ponta da Ilha foi, não só cultural mas também de sabor pastoral. Apesar de ter sido feito pela laicidade de hoje, acabou por ser um reflexo dos movimentos culturais da Angra eclesiástica do século passado.
Foi um reflexo, sim, desses anos já longínquos. Reflexos que estão, infelizmente, a desaparecer, a desaparecer cada vez mais.
A verdade é que já não existe um Coelho de Sousa, um Antonino Tavares, um Edmundo Oliveira, um Piques Garcia e tantos outros – artistas da beleza e do belo.
E ainda de outros, que, felizmente, fazem parte do nosso viver quotidiano, marcam a sua presença válida nos lugares onde residem. Exemplos: o José Rodrigues, o Armindo da Luz, o Artur Goulart, o António Cordeiro, o Avelino Soares, o Agostinho Quental , o António Moniz, o Manuel Azevedo , o José Gabriel, o Carlos Sousa , o António Dionísio, o J. Francisco Costa e outros que a memória já não abarca. Sentimos a sua presença, não só na feitura do programa, como, sobretudo, quando nos sentámos a vê-lo, no televisor. Esta crónica é dedicada a todos estes e outros que conhecemos, e com os quais tivemos a felicidade de conviver na santa casa mimosa de Deus.
Terão os responsáveis de hoje, visto este programa? Não sabemos. Se o viram, terão tirado as suas conclusões. Nós tiramos as nossas.
Foi um programa feito por laicos, que fazem o que podem e sabem, e para quem o fazem. Sabem o que o público deseja. Vivem dentro da comunidade e com ela se identificam. Porque se assim não fosse, nada teria acontecido. É importante acreditar, viver e sentir a comunidade.
Para os jovens de hoje, aconselho que alimentem o espírito, que dá vida e sabor aos dias da vida terrena. Boas Festas e Feliz Ano Novo.
escrito na ortografia antiga
altodoscedros.blogspot.com